Divã no Boteco – X

O bar estava frio. E não era só o ar-condicionado vencido do boteco, era um frio existencial, desses que nem cachaça esquenta. Eu encarava o psicanalista, ele me encarava de volta, e o silêncio era tão espesso que dava pra cortar com a faca do bife à milanesa que ninguém pediu. O garçom, que normalmente palpita mais que comentarista esportivo fora da Copa, também estava mudo. Estranho.

Mas alguém tinha que começar esse espetáculo de miséria emocional.

— Eu sei, doutor… toda vez que o senhor pede pra eu pagar a conta, é só pra reforçar que nossa relação é puramente platônica e capitalista.

Ele sorriu de canto, como quem diz “é transferência, mas vai fundo”. E eu fui.

— Eu sei, eu sei… Eu venho aqui toda semana pra projetar minhas angústias, terceirizar meus fracassos e fingir que entender o passado me ajuda a sobreviver ao presente. É terapia? É. Mas também é vaquinha de afeto. E o senhor, nesse teatro, faz o papel do oráculo que finge não saber, só pra eu achar que descobri sozinho.

O garçom se aproximou, fingindo que limpava a mesa, mas claramente ouvindo. Porque nesse boteco, terapia é open bar.

— Só que tem uma coisa, doutor… tem uma coisa que eu não consigo mais transferir.

Silêncio dramático. O psicanalista levantou uma sobrancelha. O garçom parou no meio do pano. E eu fui direto ao ponto:

— Minha paixão pela camisa amarela.

Tchan-tchan-tchaaaaaan.

— É isso mesmo, doutor. O povo transfere tudo: crença, fé, esperança. Confia em pastor de TikTok, curandeiro de Instagram, em grupo de zap que promete 10 mil por mês só pra clicar em anúncio. Isso é o quê? Isso é Brasil 2025. Ou, como o senhor chamaria, transferência simbólica.

A mídia? Ah, essa já virou uma escola de charlatanismo ilustrado.

— Outro dia, vi o Merval Pereira dando palpite sobre geopolítica da China, como se tivesse almoçado com Xi Jinping e tomado café com Confúcio. Nunca pisou na China, mas jura que o TikTok vai implantar o comunismo via dancinha.

E sabe o pior, doutor? É a escolha das palavras. Porque a linguagem, no Brasil, é arma de controle social. O pobre não “investe”, ele “gasta”. Protesto de estudante é “baderna”; de ruralista, “mobilização”. Favela “explode”; condomínio “lamenta”. Vagabundo é sempre o da fila do SUS — o outro, engravatado, é “executivo investigado”.

— Isso não é só semântica, doutor, isso é projeto de poder. É a linguagem do dominador vestida de análise imparcial.

O garçom soltou um riso contido. O doutor anotou alguma coisa com cara de “isso vai render”.

— E a hipocrisia, doutor? Essa é o tempero nacional. Todo mundo escreve sobre corrupção como se fosse uma entidade mística que brota do chão. Ninguém menciona os empresários que passam o chapéu com bônus de fim de ano. Parece até que só existe corrupto porque chove propina, não porque tem gente pagando.

Respirei fundo. Virei o copo.

— E no futebol, doutor? Ah, no futebol é negação com prorrogação.

A CBF virou um bunker, o técnico é um estrangeiro de sotaque escorregadio que chegou aqui justo quando o governo dele quer devolver os brasileiros “oriundi” de onde vieram. E o povo? O povo só quer saber se ele vai escalar azul.

— Azul! A cor da nova seleção brasileira. Porque amarelo, doutor… amarelo ficou difícil de amar. Pode ser até vermelha, verde, mas amarela, não dá mais.

Aí sim o psicanalista levantou os olhos. O garçom parou, segurando a garrafa no ar. E eu concluí:

— Eu, doutor… eu não consigo mais torcer pela camiseta amarela. Não por causa do futebol. Mas porque ela anda desfilando em manifestações de gente que torce mais pelo ódio do que por gols.

O psicanalista fechou o caderno. O garçom serviu outra rodada. Eu aceitei.

Porque, no fim das contas, ainda tem coisa que vale a pena acreditar: como no bar, onde a conta chega, mas pelo menos vem com tira-gosto.


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