Cheguei ao bar em modo emergência. Não era por sede de álcool, era por abstinência de sanidade. Lá estava ele: o Doutor. Já acomodado com seu chope gelado, o olhar distante de quem analisa o mundo entre um amendoim e outro.

O happy hour dele era um ritual sagrado – cerveja, silêncio e, com sorte, nenhuma conversa sobre política. Mas eu cheguei com um furacão na cabeça e pedi… um chá de camomila.

Silêncio.

O garçom, que nunca tinha ouvido aquilo nem quando o bar virou ponto de yoga na pandemia, travou. O Doutor levantou uma sobrancelha, como quem pensa: “Já vi negacionista virar vegetariano, mas isso… isso é novo.”

– Me desculpa, Doutor. Sei que atrapalho sua contemplação etílica, mas minha cabeça tá mais travada que sistema da Receita no último dia de declarar o IR.

Ele anotou algo na caderneta. Provavelmente: “Paciente em surto florido. Sintoma: pede chá num boteco.”

Respirei fundo. Comecei o relato:

– Tive um sonho, Doutor. Um pesadelo daqueles que nem Freud explica sem antes tomar um Lexotan. Era uma revolta no Brasil por causa da morte de dois funcionários da embaixada de Israel em… Washington. Isso mesmo. Revolta em Brasília por evento em Washington. Já começou aí o delírio.

O garçom parou no meio do salão. O cara da sinuca largou o taco como quem pressente tragédia.

– E não era uma revolta qualquer. Gente queimando bonecas Bebê Reborn em praça pública, num protesto simbólico… contra as crianças de Gaza. Um surto coletivo digno de Black Mirror meets Cracolândia.

O Doutor coçou o queixo. Anotou de novo. – Mas aí veio o clímax: Bolsonaro apareceu. Claro que apareceu. É sonho ruim, né? Ele surgiu montado num jegue, sem camisa, coberto por uma faixa que dizia “Salvador da Pátria”. E do nada, o cara começa a jogar gasolina na bandeira dos Estados Unidos… e queima! Pausa dramática.

– QUEIMA, Doutor! A bandeira que ele mais ama. Aquela que ele tratava com mais carinho que os filhos, que a Constituição, que o Queiroz. A bandeira que ele praticamente adotou como segunda pele… queimando. Mais silêncio. Mais choque.

– E gritando: “PRECISAMOS VOLTAR A QUEIMAR A BANDEIRA AMERICANA! Quem esses imperialistas pensam que são pra querer investigar o nosso Alexandre de Moraes?!”

Eu olhei pro copo de chá. Frio, insosso, desmoralizado. O líquido tinha mais coerência que o roteiro do meu pesadelo.

– Foi aí que eu acordei, Doutor. No susto. Suando. E percebi: não era realidade. Era só um delírio onírico patrocinado por excesso de manchete e pouco filtro solar. Porque veja bem… esse mesmo Bolsonaro que sonha em matar Alexandre de Moraes, Lula e Alckmin, agora tava ofendido com o secretário de Estado americano por sugerir punição ao Moraes? Revirei os olhos.

– É demais até pra quem tem Síndrome de Williams, Doutor. Porque veja: a família Bolsonaro tem essa relação meio… grudentinha com os EUA. É tipo síndrome de Williams mesmo: afeição desmedida, sorriso fácil, amor platônico por vendedor de popcorn e de “ince cream”. Eles não queimam bandeira. Eles batem continência, pedem autógrafo e juram lealdade eterna em inglês com sotaque de rodoviária. O garçom, emocionado, limpou uma lágrima com o pano de balcão. O cara da sinuca cruzou os braços.

Todos atentos.

– Sei que é um exagero, Doutor. Mas será que essa paixão por líderes grosseiros, autoritários, que batem na mesa e gritam “eu mando!”… não é um caso clínico? O Doutor, até então mudo como o Supremo diante de um indulto absurdo, fechou a caderneta com delicadeza. Deu um último gole no chope, limpou a espuma da barba e respondeu, pela primeira e única vez na noite:

– Chá trata ansiedade. Chope trata lucidez.


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