Divã no Boteco – XIII

A luz difusa do “Fale Mais Sobre Isso” lambia as garrafas, conferindo ao boteco um ar de confidencialidade que só o álcool e as almas em frangalhos conseguem criar. Eu, com meu chope quase morno, aguardava a chegada do Doutor. Pontual como a ressaca de domingo, ele surgiu, e sua figura já era quase parte do cenário: meio mestre dos magos, meio zelador dos meus colapsos existenciais. Sentou-se, tirou o inseparável bloquinho de anotações — aquele que ele jura serem listas de compras, mas que eu desconfio abrigar minha biografia não autorizada — e fez aquele movimento com as mãos que significa: “Despeja, que hoje tô com o fígado limpo e o juízo sujo.”

Eu já ia começar o tradicional monólogo sobre toalhas molhadas e relacionamentos úmidos, quando um berro estridente cortou o ar. Um bebê. Do tipo revoltado com a existência. Lá estava ele, em seu trono rodante, berrando como se a vida tivesse lhe negado um cargo comissionado. O pai, coitado, tinha o olhar de quem já desistiu; a mãe, mais pragmática, acionou o protocolo maternal. Balançou, cantou, ofereceu dedo, colo, dignidade — nada. O pequeno estava determinado a militar contra o mundo.

Foi então que, numa coreografia digna de ginasta olímpica, ela sumiu com o bebê para o canto escuro do boteco. Quando voltou, ele mamava na santa paz da teta — um silêncio sagrado pairou. O bar respirou.

— Doutor, falei, repentinamente, eu tive uma luz! Não a do bar, que vive pifando, mas a da minha mente botecopsicanalítica. Olhei pro moleque e despejei na terapia: 

— Quantos adultos por aí não largam a teta do poder com o mesmo chilique? Bolsonaro, por exemplo. Perdeu a eleição e tentou agarrar o Palácio como criança agarra a barra da saia da mãe. Ficou ali, chorando baixinho, querendo que alguém inventasse um resultado novo. Teve que sair de ré. E levou junto sua trupe de mimados, cada um com um ego inflado e um QI de rede social.

E aí me veio à mente aquele papo nosso, Doutor, sobre o tal do “Rei Bebê”. Freud explica — ou pelo menos dá um bom nome. E, olha, se tem alguém que carrega o título com louvor, é o filho 03. Eduardo “Bananinha” Bolsonaro: príncipe herdeiro da birra, o reizinho da negação, agora exilado nos EUA como se fosse dissidente político e não apenas um menino mimado com Wi-Fi.

— Ele sofre, Doutor. Sofre porque a mamãe Pátria não quer mais dar a teta. Porque o STF impôs limites. Porque a Polícia Federal apareceu com fraldas novas chamadas “mandado de busca”. E aí ele faz o quê? Projeta tudo pra fora. Culpa os outros. O Judiciário virou o monstro do armário. O Ministério Público é o lobo mau. A imprensa é a madrasta. O problema nunca é o papai mito. Claro que não. Papai é perfeito. Papai é mito, não réu.

E a viagem pros Estados Unidos? Aquilo foi fuga em fralda geriátrica. É a versão institucional do “vou fugir de casa”. O Brasil começou a parecer adulto demais, com regras, leis, investigações… então ele cruzou o continente pra buscar refúgio onde pudesse continuar brincando de revolução, sem ninguém pra dizer “não pode”.

— E aí vem o auge da birra, Doutor: ele quer punir o Judiciário brasileiro. É isso mesmo. Como o bebê que, ao não ganhar o brinquedo, tenta derrubar a loja. Articula no exterior, tenta cooptar políticos gringos, ameaça com comissões, como se fosse a ONU da fralda suja. É o autoritarismo de pelúcia: fofo, mas perigoso.

A lógica dele é simples: “Se o Brasil não brincar do jeito que eu quero, eu vou embora e levo meu jogo comigo.” É a infantilização da política em estado puro, Doutor. Uma elite que cresceu sem ouvir “não” agora surta quando a realidade bate à porta com um boletim de ocorrência.

E o mais cruel: ele está disposto a sacrificar as instituições só pra defender o pai. Porque, pra ele, o mundo é um grande presépio familiar: ou tudo serve ao clã, ou vira inimigo. Democracia? Só se puder ser herdada. Justiça? Só se blindar os meus. República? Só se for hereditária.

Aí, Doutor, o senhor me olha com essa cara de esfinge de bar, rabisca seu bloquinho como quem pensa se escreve “leite integral” ou “neurose de transferência”. Mas hoje eu vi. Hoje eu entendi.

— O 03 não foi pra Miami fugir da lei. Ele foi tentar reconstruir a creche do poder em outro hemisfério. Mas, no fundo, ele sabe: nenhuma teta é eterna. E nenhuma birra resiste à realidade.

O Doutor, claro, não disse nada. Apenas levantou o bloquinho, me mostrou um rabisco de mamadeira e fez aquele gesto com a mão, como quem diz:

— Fale mais sobre isso.


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