— Doutor, eu queria entender uma coisa: por que o Brasil tem essa mania de fingir que não é com ele? Igual aquela senhora que chega toda emperiquitada no boteco, salto quinze, batom carmim, um lenço de seda no pescoço, pedindo espumante num lugar onde a bebida mais refinada é catuaba gelada. Sabe quem é? Aquela que senta no banquinho de madeira como se fosse trono. A diva. A diva do boteco.
— Ela entra como quem foi convidada pra um coquetel, ignora o cheiro de fritura que invade o ar, finge que não ouve o pagode ao fundo e ainda reclama que o garçom não trouxe taça de cristal. E olha que eu já vi ela sair no fiado mais de uma vez, mas nega, nega até a alma. Diz que é charme, que é personagem. Mas ali, doutor, todo mundo sabe: ninguém finge tanto sem ter medo de olhar no espelho.
— É disso que eu vim falar hoje, dessa coisa que o senhor chama de negação. Aquilo que Freud dizia, né? Quando a gente reconhece o que não quer aceitar e empacota com laço pra parecer outra coisa. Igualzinho o Brasil depois do oito de janeiro. Teve invasão, teve quebradeira, teve câmera filmando tudo, gente fazendo selfie no vandalismo como se fosse passeio escolar… mas o que se vê agora é um desfile de “eu não vi”, “não fui eu”, “isso foi exagero da imprensa”.
— E até quem a gente achava que era lúcido embarcou na farsa. Olha o Aldo Rebelo, por exemplo. Um homem vivido, experimentado, foi ministro, leu muito Gramsci. Foi só tomar uma bronca do Moraes no STF que virou comentarista de mesa de bar, dizendo que a Corte está legislando demais, que não há mais uma Constituição, mas onze. Onze, doutor! Cada ministro com a sua. E agora ele aparece lado a lado com Kassab, flertando com o bolsonarismo, como se a coerência fosse um luxo dispensável.
— E essa semana tem mais: o general Heleno vai depor. Aquele que vivia gritando “se gritar pega centrão…” e depois estava almoçando com os mesmos. Que se dizia patriota, mas agora vai ter que explicar por que estava no meio de tudo — e finge que não sabe de nada. Vai chegar com aquela cara de quem foi convidado pro batizado e descobriram que ele era o padrinho do golpe. Aposto que vai negar. Vai dizer que não tinha intenção. Que era só retórica. Igualzinho a diva pedindo espumante num boteco — só pra manter a pose.
— Não é só ele, não. O Brasil virou essa diva no boteco. O país se maquia todo dia, bota salto pra esconder o calo, perfume francês pra disfarçar o cheiro do esgoto. Quando confrontado, faz piada. Quando desmascarado, grita “perseguição”. O Brasil não quer saber de terapia, doutor. Prefere live com filtro.
— E veja só, essa diva, essa figura que encarna o Brasil, ela não está mentindo de propósito, não. Ela acredita mesmo na fantasia. Porque a mentira bem contada conforta. E entre a dor da verdade e o aconchego da ilusão, a escolha é sempre pelo que não dói. É mais fácil chamar o garçom de “maître” do que encarar que o chão tá sujo e o copo tá lascado.
— Mas sabe o que me preocupa, doutor? É que essa diva, uma hora, tropeça no salto. E quando cair, vai dizer que foi o mundo que girou errado. Vai negar até o tombo.
— O senhor não acha que a gente devia tirar o espelho do bar?
— Deixa ele aí, pra gente refletir um pouco, finalizou o psicanalista.
