Divã no Boteco – XIV

— Cadê todo mundo, doutor? Cadê a alegria de Copa do Mundo? Nem o bar tá no clima. Agora que o técnico da seleção é o Ancelotti — italiano! — a seleção vai entrar de azul. AZUL, doutor. Um apagão cromático na alma brasileira. Nem isso anima mais. Sabe o que eu acho? A gente não tá deprimido só porque perdeu alguma coisa. A gente tá deprimido porque tem coisa demais.

— Eu acordo com 300 notificações, 80 notícias, 47 teorias da conspiração, 22 vídeos de gente explicando o que não entende, e no meio disso tudo… eu. Um grão de areia num deserto de informações. Ou uma gota num oceano de sabedorias inúteis. Eu não sei se tô com vazio existencial ou se tô só com indigestão de tanto conteúdo.

— A inteligência artificial é passiva, doutor. Mas ela sabe de tudo. Já o ser humano é ativo… mas ignorante. É a guerra da ignorância ativa contra o conhecimento passivo. E sabe quem tá ganhando? O algoritmo.

— Um amigo meu largou o X, aquele falecido Twitter. Saiu sem olhar pra trás. Um ato de coragem, como quem abandona o álcool. E eu fiquei aqui, preso, lendo thread de gente que acha que o Hang tá destruindo o país ao dizer pra não dar esmola — porque, veja bem, isso abriria espaço pro monopólio da caridade estatal, que segundo a cabeça maluca da mulher, só beneficia ONGs e políticos. Tem que ter PhD em burrice pra chegar nessa conclusão.

— Outro dia, uma jornalista de quatro costados (como diria minha avó) esbravejou que ia pagar mais imposto de renda por culpa do governo Lula. Esqueceu só de mencionar que a tabela não é corrigida há DÉCADAS. A realidade é uma Ferrari com pneu careca, doutor — ninguém mais tem aderência nenhuma com ela.

— E a imprensa? Trata ataque ao Judiciário com a mesma emoção de quem lê bula de remédio. Neutralidade virou anestesia. Gente articulando o fim da Constituição como quem escreve fanfic. Querem acabar com o que nos constitui, doutor — como se rasgar a alma de uma pessoa fosse só uma mudança de estilo de vida.

— E sabe o que é pior? Eu ainda tenho esperança. Ridículo, né? No meio desse deserto, fico procurando um oásis. Um passe de letra. Um toque do Sócrates, o do Corinthians mesmo, não o filósofo. Alguma coisa que exalte a raça humana. Nem que seja só uma piada boa.

— Eu não quero virar um influencer da melancolia, doutor. Nem parecer inútil nas redes. Mas é difícil competir com tanto conteúdo inútil dito com convicção. A burrice hoje tem autoestima. A inteligência anda insegura. E eu? Eu tô aqui, com o copo na mão, esperando um gole de sentido.

— Talvez eu só precise de um bom livro, daqueles que meu outro amigo recomendou — “não leia todos, leia os certos”. Mas como saber, doutor, quais são os certos, se até os errados têm cinco milhões de visualizações e um canal no YouTube?

— No fundo, eu só queria sair da boiada sem parecer que sou do outro rebanho. Já entendi que o caminho do bolsonarismo leva direto à ignorância com orgulho. Mas o outro caminho… é onde? Onde é que eu me informo sem ser manipulado? Onde é que eu critico sem ser confundido com coach?

— Tem dia que o Minecraft me parece mais verdadeiro que a realidade. Lá, pelo menos, ou você constrói ou morre. Aqui, a gente só compartilha e enlouquece.

— Mas, enfim, doutor… já falei demais. Me passa a conta, que hoje sou eu que pago. Só não me cobra com boleto do X, senão eu também largo essa droga.


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