Televisão alta no boteco. A política nacional toma conta da tela como final de Copa. No centro, Marina Silva e o senador Plínio Valério em confronto. Juvenal, o garçom, congela com o pano no ombro, entre o deboche e o susto.
No fundo do balcão, o paciente — fiel do divã etílico — ergue o copo, cutuca o analista mudo e fala:
— Olha lá na televisão, doutor… até o Juvenal parou pra ver o bate-boca no Congresso. Me diz uma coisa: isso aí é psicopatia ou psicose?
— Não tô falando de mim, relaxa. Tô falando dele ali, ó. O senador. Não é a primeira vez que ele parte pra cima da ministra. E agora vem com essa: “respeito a mulher, mas não a ministra”. Ah, vá. Já viu alguém dizer: “respeito o senhor como homem, mas não como ministro”? Duvido. Quando o cara é um lixo na função, geralmente é pior ainda como pessoa.
— Essa mania de separar o que não se separa… parece psicose, né não? Igual pastor que acha que fala direto com Deus por canal exclusivo. Tipo ligação a cobrar pro céu, e só ele tem o número.
— Me diz se eu tô viajando, doutor: a gente precisa acreditar em alguma coisa. Se não acredita em nada, trava. Somos tipo computador velho, sabe? Frágil. Precisando de sistema pra rodar. De um programa que diga quem a gente é, onde tá, e o que tá fazendo nesse mundo bagunçado.
— Sem isso instalado, dá bug. A cabeça começa a inventar coisa. Cria realidade paralela. O sujeito acha que é escolhido por Deus, fala em nome da pátria, e vê inimigo em todo canto. É tipo abrir o Google e só carregar teoria da conspiração. Ou é psicótico, ou tá de má-fé.
— E olha que tem muito político hoje que parece que veio sem esse programa básico de fábrica. Tipo computador sem manual. Em vez de atualizar o sistema, usam o defeito pra enganar os outros. Falam pra orar por pneu, erguer celular pro céu, tomar cloroquina e duvidar da vacina. Mas quem tá descontrolada é a Marina?
— É ela que tem que “se colocar no lugar”? Qual? De mulher quietinha? Submissa? Ah, vá…
Pausa. Gole no copo. A TV berra:
— “Só os psicopatas!” — grita Marina.
— Tá aí, doutor. A frase que resume tudo. A gente tá num tempo em que os símbolos foram pro ralo. A ideia de certo e errado virou meme. O Brasil parece um orfanato simbólico: sem referência, sem autoridade de verdade, só os gritos dos desesperados. E quem grita mais alto vira profeta.
— E esses falsos pais, vestidos de salvadores, prometem tudo. Inclusive o fim do mundo — contanto que venha com hino evangélico e camisa da Seleção.
— Enquanto isso, a imprensa, fria como CPU de última geração, finge imparcialidade: se a Marina reage, é “histeria”. Mas se o senador diz que passou seis horas com ela e não precisou enforcá-la, é “brincadeira”. Que parte do nosso código social aceita esse bug como normal?
— Talvez o Brasil nunca tenha instalado direito esse programa que organiza tudo. Esse que dá “norte”, que cria lei, limite, convivência. Sempre fomos fãs de copiar gringo em vez de entender quem a gente é. Preferem os EUA como “pai”, mesmo quando eles mandam nosso diploma de volta com um tapa.
— E aí, o que sobra? O vazio. A tela azul da alma. Um sistema travado, rodando em modo de segurança.
— Agora olha aí, doutor… mudaram pro canal de ciência. Telescópio James Webb. Galáxias antigas que já até morreram, mas a luz ainda chega. A gente acredita no que vê, mesmo que já tenha acabado. Igual nossos heróis, nossas crenças, nossos líderes. Tudo já passou, mas a luz ainda brilha, iludindo quem olha.
— No fundo, acho que a gente precisa disso. Precisa acreditar em alguma coisa, senão enlouquece de vez. E quando falta um “pai” de verdade, a gente inventa um: de farda, de bíblia, de arma… qualquer um. Mas que tenha cara de pai.
Juvenal volta à vida, limpa o balcão. O psicanalista rabisca algo no guardanapo, com a paciência de quem já diagnosticou a república inteira.
— Fecha a conta, doutor. E joga tudo na comanda da psicose nacional.
