O copo suado de cerveja na mesa, a fumaça do churrasquinho dançando com o cheiro de óleo reutilizado pela décima vez. O paciente espreguiçava-se no divã invisível do boteco, com a leveza de quem carrega o país nas costas. O doutor – ou melhor, o terapeuta de copo cheio – apenas arqueava a sobrancelha, como quem já desistiu de diagnosticar o caos.

— Doutor, eu tô tentando entender… esse fetiche nacional pelo sofrimento.

O psicanalista molhou os lábios no chope e esperou. Silencioso como Freud depois da terceira dose.

— A pessoa sofre uma invasão, um golpe, uma rasteira. E o que faz? Abraça o agressor. Leva ele pra dentro, faz um miojo, empresta o Wi-Fi e ainda pede desculpa por ter se assustado.

O doutor rabiscou algo num guardanapo. Talvez uma receita de rivotril com feijoada.

— Isso é síndrome de Estocolmo? É masoquismo? É só carência afetiva de 522 anos? 

Nada. Só um suspiro e aquele olhar de “vai piorar antes de melhorar”.

— Doutor… se o Brasil fosse um paciente, ele ia chegar aqui sem saber se é um país tropical ou um grande episódio de “Casos de Família”.

O analista ajeitou os óculos, como quem já ouviu coisa pior. E provavelmente já ouviu.

— Veja bem: tem deputado viajando pra gringa pra falar mal do próprio país.  Ir aos states pedir golpe de estado no Brasil, de novo? É como voltar com o ex para receber mais porrada dentro de casa. 

O psicanalista franziu a testa.

— E a imprensa? Trata golpista como hóspede de spa: bomba caseira virou “item decorativo”, plano de assassinato é “excesso de entusiasmo”.

O terapeuta ergueu uma sobrancelha, como se dissesse “é verdade esse bilete”.

— Agora tem neto de ditador batendo ponto na política, todo arrumadinho, citando leis de outro país, tipo quem se apaixona pelo ex do amigo e ainda quer herdar o cachorro.

O doutor suspirou. Aquela mistura de exaustão e vergonha alheia.

— E atacam a Marina Silva porque defender floresta virou coisa de comunista vegano com ascendente em capim.

O paciente virou o copo, agora mais animado que indignado.

— E trocaram a Paolla Oliveira por Virginia dos Bets. A musa do samba por uma garota-propaganda de cassino virtual. É como trocar a bossa nova por jingle de call center.

O psicanalista passou a mão no rosto. Parecia tentando acordar de um pesadelo com trilha sonora de arrocha bolsonarista.

— E o Paraná, doutor? Estado que lucra com contrabando, mas surta com o funk da periferia. É tipo traficante gourmet reclamando da quebrada porque ela “não combina com a estética do bairro”.

Silêncio.

— E enquanto isso, os nossos impostos? Pagam mais juros do que escola, hospital ou esperança. O Brasil se odeia tanto que parece estar num relacionamento abusivo com ele mesmo.

O doutor coçou o queixo.

— Então… é isso, doutor. O Brasil se corta pra não sentir dor. Ele se agride pra esquecer que tá machucado. A gente virou um país emo de camiseta da seleção.

O psicanalista limpou os óculos. Com um guardanapo que já tinha desistido.

— E agora, doutor?


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