Divã no Boteco XVII – O paciente encara o copo de cerveja como quem encara a vida: fria, espumando pelos cantos e prestes a desandar. O doutor — sempre ele — anota com aquele ar de quem prefere silêncio a terapia de verdade. Não tem nome, nem opinião. Só ouve e balança a cabeça. Freud de chinelo.

— Doutor…eu não sei se reclamar demais chega a ser uma compulsão, mas será que eu tô virando um chato? Um desses fiscal de indignação? Sabe, tipo o Rivaldo, o caminhoneiro aqui da esquina. Vive ali no balcão, camisa da Seleção, boné do Bolsonaro e hálito de tubaína com diesel. Reclama de tudo: STF, Paulo Freire, Anvisa, ONU, Barbie e até da moça do Google Maps. Diz que é tudo coisa de comunista. 

— A diferença, doutor, é que eu reclamo com base. Ele fala do Alexandre de Moraes como se fosse o Darth Vader de toga. “Esse careca vai cair!”, grita, cuspindo saliva e teoria da conspiração. E o novo herói dele é o Eduardo Bolsonaro. Sim, o menino que parece playboy indicado de reality show, mas que sonha em virar presidente. Já estão até colocando ele na capa da Veja: “Eduardo Bolsonaro: entre o banco do B3 e o colinho do papai”.

— Mas o mais engraçado, doutor, é que ninguém reclama dos que merecem. O Dudu pede sanção internacional contra o Brasil e a elite aplaude. Um patriota de iPhone pedindo arrego pros EUA. Querem liberdade, mas só se for com passaporte carimbado na Disney e visto de investidor.

— Veja, do Elon Musk, ninguém reclama. O gênio. O messias do Rivaldo aparece doidão no Salão Oval e o Trump acha engraçado. O cara toma um coquetel de Cetamina, Adderall e outras cositas antes de decidir sobre a vida que afeta milhões de pessoas. E as famílias conservadoras acham que é um exemplo de sucesso aos filhos. 

O doutor só anota. Talvez desenhando um meme.

— Sabe qual é o problema, doutor? É que o Brasil virou um parquinho de gente mimada. Gente que nunca levou um “não” na infância, e agora chora porque a democracia tem regras. E aí entra o Neymar. O mascote dos mimados. Um bilionário que vive caindo, não levanta nunca, e ainda por cima imita o Maradona no único lance que o VAR constrangeria qualquer carreira: o gol de mão boba. Não é “la mano de Dios”, é “a mão grande no jogo que prejudicou o próprio Santos”. Vive suspenso, machucado, ou irritado com críticas — como se fosse um mico ameaçado de extinção. 

— E você viu, doutor? Estão tentando isolar o Alexandre de Moraes. Virou o vilão da vez. Fazem meme, fake news, propaganda com fundo verde-oliva e voz de ex-sargento. Pintam ele como censor, ditador, anticristo, justiceiro e até careca satânico. Mas ele só tá segurando a tampa da privada pro esgoto nacional não subir. E ainda tem que ouvir de empresário podre de rico que ele “exagera”. Exagera é essa galera que bate continência pra pistoleiro e ajoelha pro agro como se fosse o novo Vaticano.

Outro gole. Agora mais demorado. Quase cerimonial.

— Teve uma noite dessas que eu tive um pesadelo, doutor. Eu tava aqui no boteco, mas era um boteco gourmetizado. Pedi uma caipirinha e o garçom me respondeu: “Would you like your hot crushed lemon with sugar or stevia?”. O cara do lado pediu “uma picanha ao ponto, medium rare”, e brindou com “wine” enquanto tocava Coldplay com triangulo e pandeiro. Um patriota na mesa do fundo usava camisa do Brasil e gritava “cheers!” com pão de queijo recheado de cheddar. Acordei gritando “forró!” e abracei minha cachaça como quem salva um filho de afogamento.

O doutor ergue os olhos. Finalmente. Sem sorriso. Sem fala. Mas com aquele olhar que diz: “Você não está tão louco assim”.

— Reclamar, doutor… é meu jeito de manter a sanidade. Porque se a gente parar, sobra espaço pros Rivaldo da vida. E aí, meu amigo, o Brasil vira mesmo uma república das bananas.

O brinde final é silencioso. O país continua ardendo, mas o boteco ainda serve cerveja gelada. Por enquanto.


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