Divâ no Boteco – III

— Doutor, obrigado por me atender aqui no boteco, mesmo no meio do seu happy hour. Sei que isso não é consultório, mas, sem dinheiro, o divã bom é banco de plástico com cerveja gelada. — O que me trouxe aqui é simples e devastador: tô com uma crise existencial, política e, veja bem, até genealógica. Porque o Lula mandou investigar aquela roubalheira no INSS, descobriu um monte de entidades de fachada, descontos ilegais, fraudes que começaram lá em 2019, no governo anterior. E adivinha o que acontece? Ele virou alvo! — A extrema-direita, que deixou tudo correr solto, agora acusa ele de “politizar o escândalo”. E os jornais? Escracham o irmão dele, que nem está citado no inquérito. Quer dizer, agora o parentesco virou prova criminal? Se for assim, tô ferrado! Tenho um primo que vende diploma falso e uma tia que engana na pesagem do açougue. — E agora meu telefone não para de receber chamadas de golpista fingindo ser do INSS pra “ajustar dados” antes do pente-fino. Esse povo é tão rápido no trambique que já transformou fraude em serviço de assinatura. “Por apenas R$ 9,90 ao mês, você recebe um novo golpe com vantagens exclusivas!” — Mas o golpista de verdade mora no Olimpo. Olha o Sóstenes, o líder do PL, negociando as emendas de comissões pela anistia, ignorando completamente o que o STF determinou. E o Dino? Dá tempo pro sujeito se explicar. Aí o cara responde que não tem obrigação nenhuma de dar satisfações porque tem imunidade parlamentar. Ah, esse Sóstenes tá se metendo numa confusão que acabará numa surra igual à que o Sóstenes da Bíblia tomou. Sempre um provocador pronto pra apanhar. Foi pela treta com Paulo; agora, pela treta com o Bozo. — E bate de frente com os papas da emenda, querendo chantagear cachorro grande pra livrar o chefe da cadeia. Mas o Velho… o Velho já viu muito golpe travestido de oração. — E por falar em Bíblia… não é que a senadora Damares, aquela que viu Jesus Cristo numa goiabeira, agora quer que o Alexandre de Moraes faça exame de sanidade mental? Eu juro que li duas vezes pra ter certeza de que não era o Sensacionalista. — E no meio desse desacerto, a única certeza é que o Ney Matogrosso vence. Contra o tempo, contra os caretas, contra os que querem empacotar a arte num terno e gravata. O filme dele, Homem com H, é um soco de beleza na cara do Brasil. Jesuíta Barbosa se transforma. É o Ney nos olhos, nas mãos, no corpo inteiro. E o melhor: ele foi homenageado em vida. Porque por aqui, doutor, o comum é virar herói só depois do velório. Bebo um gole. A televisão do boteco passa o Datena gritando alguma coisa. Ninguém presta atenção. — Doutor, até o Datena perdeu o choque. Notícia de maluco tá tão normal que nem escândalo impressiona mais. Ele muda de canal, muda de emissora, mas ninguém mais liga pra gritaria. O problema é que banalizaram tanto a loucura e o crime que até o Datena virou som ambiente. — Fico em silêncio por um instante. Penso na aposentadoria que não consegui, nos 30 anos de trabalho, na sensação de alívio — alívio, veja só — por pelo menos não terem desviado meu dinheiro. — E eu tô aqui, doutor. Sem dinheiro pra pagar consulta, então aproveitei o happy hour. Porque, sinceramente, o que resta pra gente nesse país é desconto na cerveja e a certeza de que o golpe é cada vez mais sofisticado. — Ô garçom, tem certeza que essa Heineken não é Skol?


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