Divã de Boteco – IX
O boteco estava lotado. Um cheiro de pastel queimado dançava no ar junto com o bolero desafinado do sinucaço. Na nossa tradicional mesa de análise à base de álcool e recalque, a cadeira do psicanalista estava vazia. Drama.
Será que ele me abandonou?
Ou pior: será que fui diagnosticado como obsessivo por análise política de mesa de bar? Um caso grave de “perseguição de terapeuta”?
Respirei fundo. Me convenci de que não. Ou melhor, tentei.
— Compulsão por jogo? Eu? Compulsão por atenção? Por falar de mim mesmo? Magina…
Mentira. A verdade é que o Brasil inteiro tá doente — e a gente, pelo menos, já tá na triagem.
Pensei na Deolane. Sim, ela mesma, a rainha do “paz e luz” com vocabulário de tribunal do crime. A mulher transformou uma tragédia pessoal num canal de monetização emocional. Virou musa da CPI dos Jogos — aquela que começou caçando influenciadores e terminou influenciada pelo algoritmo da bizarrice.
CPI ou circo? Ninguém sabe mais. Só sei que ali o jogo é outro: gente com compulsão por atenção julgando gente com compulsão por atenção. E no final, quem ganha? O Instagram, que já devia ser citado como beneficiário direto da CPI, com CPF e conta no exterior.
E foi nesse momento que ele chegou. O psicanalista. Frio, discreto, como se não tivesse lido minha DM de desespero.
— O senhor me pegou desabafando… sozinho.
Ele apenas levantou a sobrancelha. O mesmo gesto que Freud deve ter feito quando inventaram a Jovem Pan.
— Continue.
— Compulsão por poder, doutor. É isso. É o que move o Estadão, por exemplo. Veja o editorial dessa semana. Justo na Brazilian Week em Nova York — aquela feira onde vendem o Brasil com desconto pra gringo — eles resolvem acusar o Lula de… subserviência à China.
Eu ri. Alto.
— Subserviência, doutor! Logo eles, que por décadas carregaram a bandeira dos EUA no editorial e a do mercado no coração. Agora posam de paladinos da soberania nacional, como se o Itamaraty tivesse virado a filial do Mercado Livre em Pequim.
O psicanalista apenas anotava. Sempre anotava. Acho que vai lançar um livro: “A loucura brasileira em 12 doses e 1 garrafa de cachaça”.
— E aí temos J.R. Guzzo. Esse não escreve, ele destila ressentimento. Toda semana ele entrega um texto que parece redigido num churrasco da CIA. Lula, pra ele, é uma mistura de Mao, Maduro e o porteiro do prédio que não deixa ele entrar sem identificação.
Peguei o celular.
—— Olha esse trecho, doutor: “Lula, como o vinho, viaja mal.” O sujeito acha que fez uma analogia genial, mas entregou só birra engarrafada. E o pior é que essa obsessão virou caso de clínica mesmo. O cara vê o presidente e surta. Tem gente que sonha com Paris. Ele sonha com o impeachment.
— E o mais engraçado: enquanto Guzzo jura que Lula foi até a China pra se ajoelhar no altar de Mao e pedir uma estátua na Praça Vermelha, o Estadão acusa o governo de só manter relações com Pequim por “interesse comercial”. Então escolham: ou é devoto ideológico ou é vendedor de soja. Não dá pra ajoelhar e negociar o frete ao mesmo tempo.
Pedi mais um chope.
— E ainda tem a Janja. Ah, Janja… A nova vilã da direita gourmet. Dizem que ela mandou Xi Jinping censurar o TikTok porque “é de direita”. Como se o algoritmo do TikTok não fosse mais caótico que a mente do Datena em horário eleitoral.
— O jornal tratou como se ela tivesse declarado guerra fria, invadido Taiwan e ainda pedido um chá de jasmim.
O psicanalista fechou o caderno. Estava satisfeito. Ou assustado.
— Mas veja, doutor… não é compulsão o que faço aqui. Isso aqui é patriotismo analítico! É autoajuda alcoólica!
Ele terminou o chope, pagou a conta, deixou uma balinha de hortelã na mesa e saiu. Sem dizer uma palavra.
Fiquei ali, sozinho com a fritura e o barulho da sinuca. Pensando no país, na Deolane, no Guzzo e no TikTok.
A compulsão do Brasil é clara: a gente não se contenta em vender a pátria. A gente vende com frete grátis, desconto de Black Friday e ainda oferece brinde — um editorial.
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Doidão por atenção
