Divã no Boteco – VIII
O paciente chegou antes do chope. Com os olhos faiscando de ansiedade, derrubou a tulipa do analista antes mesmo de sentar. A sorte é que já estava vazia. Senão, era banho gelado de cevada, e o doutor não voltava nunca mais. Ele, então, se desculpa e começa a sessão informal com a frase que já virou bordão nos nossos encontros etílicos:
— Doutor, não vá pensar que isso é carência ou vontade de aparecer…
A pausa dramática não era pra chamar atenção, claro. Era pra tomar fôlego.
— Eu sei que pra chamar atenção hoje em dia precisa muito mais… Veja a Record, o SBT… Eles não mostram mais só o corpo estirado. Agora tem o orifício da bala em close-up HD. Mesmo assim, ninguém mais se comove. Poça de sangue virou banho de água fria, sem cloro e sem consciência.
A essa altura, o analista se limita a ajeitar os óculos — gesto que já indica: “só continua”. E ele continua.
— Outro exemplo? A entrevista do Lula na China. Todos os veículos sérios do planeta — Bloomberg, CNN, Financial Times — perguntando sobre moeda comum, geopolítica, paz na Ucrânia, tarifaço do Trump… E quem representa o Brasil? Um repórter da TV Globo. Felipe Santana. A pergunta dele, doutor, foi se a Janja se meteu na pauta do TikTok.
O copo do analista tremeu na mesa. Mas não era de emoção. Era vergonha alheia.
— E o Lula teve que explicar que a pergunta para o Xi Jinping foi dele — e não da Janja. E que ela não é cidadã de segunda classe, não, senhor. Que entende mais de rede social do que ele e do que muito jornalista por aí. Mas olha a malícia: o tom da pergunta deixava subentendido que a primeira-dama estava ali de penetra, palpiteira, uma espécie de Yoko Ono do Itamaraty.
O analista anotava algo num guardanapo — ou fingia anotar, como sempre faz quando o paciente dispara críticas sociais disfarçadas de desabafo.
— Isso aí, doutor, não é jornalismo. É TPH: Transtorno de Personalidade Histriônica. Eu tenho quase certeza. Veja os sintomas… Necessidade de ser o centro das atenções, teatralidade, dramatização excessiva, relações que parecem mais íntimas do que são…
O garçom interrompe, coloca uma porção de bolinho de carne seca (versão gourmet, claro), e o paciente engata mais um exemplo:
— Esses dias está rolando um convescote em Nova York: Week Brasil pra cá, Summit Brazil pra lá… A frequência é a nata do PIB — empresários, banqueiros, ministros. E, pra chamar a atenção, apresentam o Brasil como uma mala de “oportunidades”. Quase um camelô da Faria Lima. O sujeito abria a palestra como quem vende pulseira no trem: “Promoção, senhores! Tem minério, tem agro, tem povo barato! Aproveite que tá acabando!”
O analista, impassível, sinaliza pro garçom limpar a tulipa derrubada.
— Mas veja, doutor… o senhor me desculpe pela tulipa derrubada, não foi ato falho, não. Não fiz isso pra chamar atenção, como os psicanalistas costumam dizer. Foi pura desatenção mesmo. É por isso que eu venho para nossas sessões: pra me concentrar em algo bom. Aqui, ao menos, ninguém finge neutralidade, ninguém empacota o país como se fosse liquidificador em outlet.
O analista faz uma pausa e olha para o chope.
— Então acho que vamos precisar de mais uma rodada.
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O Brasil na vitrine e a compulsão pelo espetáculo midiático
