Divã no Boteco – VI:
Era pra ser só uma cervejinha. Um gole no copo, outro na solidão. Mas quem disse que o destino respeita o cansaço de um psicanalista? Lá estava ele, o Doutor, mergulhado no seu caderno de anotações, rabiscando traumas ou receitas de boteco — nunca saberei. E eu, como sempre, cheguei atrapalhando seu momento de contemplação etílica com uma dúvida absolutamente pertinente: por que um papa escolheria o nome Leão?
— Papa Leão XIV — eu disse, já puxando a cadeira — só conheço um leão na Bíblia, aquele da cova de Daniel. E nem era domesticado. No máximo, roncava como um político em sabatina. Agora temos um Papa Leão, americano do Peru!
O Doutor levantou os olhos, mas não falou nada. Talvez por medo de me encorajar. Ou por saber que o monólogo era inevitável.
— Claro que tem o “Leão de Judá”, símbolo de Cristo e tudo mais. Força, realeza, justiça… Um baita currículo. Mas também tem o outro lado do leão: o que ruge na esquina, pronto pra devorar nossa sanidade. Que, aliás, está em falta. Agora, o Leão XIV quer criar pontes entre a Igreja e um mundo em convulsão. Se depender das redes sociais, vão soltar Barrabás e jogar Cristo aos leões.
Ali é a imagem precisa desse hospício coletivo onde todo mundo dá opinião como se fosse oráculo, mas ninguém escuta ninguém. Uma Babel de vaidades, egos inflados e certezas ocas. Todo mundo se olhando no espelho e vendo o que quer ver. Ou o que quer esconder.
— Doutor, me diga: isso não é a tal da “lei do espelho” do Lacan?
Ele sorriu de canto. Já era alguma coisa.
— A gente projeta nos outros o que não aguenta ver em si. Igual o Deltan, lembra dele? Agora resolveu brincar de fabulista constitucional. Disse nas redes que, como o Congresso suspendeu o processo do Ramagem, a ação toda deveria ser suspensa — como se, ao tirar um espinho da pata de um rato deputado, todos os bichos da floresta golpista, inclusive o vilão Scar, do Rei Leão, ganhassem perdão automático. Deltan apelou para fake news dizendo que é o que manda a Constituição, escrita talvez num pergaminho encantado que só ele leu. A Constituição não é conto infantil. Mas Deltan, coitado, já não sabe mais se é promotor, personagem ou autor da própria ruína.
O Doutor anotava. Não sei se o que eu dizia ou o que ele pensava sobre mim. Talvez um pouco dos dois. Afinal, ele também se espelha em mim — mesmo que só pra lembrar o que não ser.
— A verdade, Doutor, é que a civilização sempre viveu matando um leão por dia. Só que hoje, com tanto coach e messias de TikTok, tem muito charlatão por aí vestido de herói. Só que o herói de verdade encara o espelho. Esses aí usam filtro do Instagram.
Pedi outra cerveja.
— E sabe qual é o problema de tanto leão solto por aí? Ninguém quer reconhecer o bicho que tem dentro de si. Só que o ego, Doutor… o ego ruge. E quando ruge demais, vira surto.
O Doutor fechou o caderno. Eu achei que era o fim da sessão. Mas ele apenas olhou pro fundo do copo e disse:
— E tem gente que nem leão é. É só um gato bravo com crise de identidade.
Brindamos. Porque no fundo, a gente ri pra não ter que rugir.
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O mundo em convulsão e o ego no espelho
