Divã no Boteco – VII
A sessão de hoje começou antes da cerveja chegar. Bati os olhos no doutor — já sentado na mesa do canto, bloco na mão, copo de catuaba ainda pela metade — e me deu um aperto no peito. Eu precisava falar. Tinha alguma coisa errada comigo.
Sentei, pedi uma Brahma e mandei a real:
— Acho que tô dependente, doutor.
Ele só levantou uma sobrancelha. Anotou. O garçom trouxe a cerveja e duas tulipas. O doutor serviu sem pressa, como quem sabe que o álcool ajuda o inconsciente a sair do armário.
— Não é álcool, nem nicotina, nem… nem essas modernidades de cogumelo gourmet. É outra coisa. Mais suja, mais barata, mais viciante.
O doutor deu aquele pigarro que ele usa quando a coisa promete. E voltou a anotar.
— Começou devagar… umas olhadinhas de manhã, umas cutucadas no intervalo do almoço. Mas agora eu acordo de madrugada pra conferir se alguém me xingou. É vício mesmo. E o pior é que acho que todo mundo tá na mesma.
O ventilador do boteco girava preguiçoso, empurrando o cheiro de gordura. Na TV, reprise do jogo da terça. Um pênalti mal marcado e um lateral com cara de CPI.
— A ficha caiu quando eu vi aquele vídeo do Bolsonaro. Tava emocionado, igual criança no Beto Carrero, dizendo: “We love the American people. We love popcorn. We love ice creams sellers.”
Falei em voz alta. Ice creams sellers.
A mesa da sinuca parou. Um cara tossiu na coxinha. O doutor anotou “trauma linguístico colonial”. Aposto.
— O Bolsonaro parecia um vira-lata pedindo carinho em porta de shopping. Nem tentava esconder. E o pior é que muita gente achou bonito! Disseram que era humildade, que era carisma. Mas no fundo era só aquele nosso velho e suado complexo de vira-lata — aquele mesmo que Nelson Rodrigues gritou e ninguém quis ouvir. A gente ainda acha que vale menos porque não fala inglês com sotaque de aeroporto.
O doutor agora mastigava um amendoim. Silêncio de análise.
— Enquanto isso, Lula… foi pra China. Sim, a China! Pegou avião, apertou a mão de Xi Jinping e ainda deu uma passada no Putin. O pessoal surtou! Chamaram de comunista, traidor da pátria, seguidor do anticristo. Mas ninguém reclamou quando a família Bolsonaro fazia cosplay de caubói e implorava visto pros filhos que tinham medo de responder processo no Brasil!
O doutor fez aquele “hum” longo que ele solta quando tá dividido entre o cinismo e a aprovação.
— E olha só a ironia… O Trump, aquele ídolo da família tradicional de Alphaville, precisou recuar com a guerra comercial porque quem manda mesmo é a China. A mesma China que agora é parceira do Brasil, que compra nosso ferro, nossa soja, e ainda por cima escuta a gente com um mínimo de respeito.
Outra tulipa cheia. A terceira.
— Só que essa galera que idolatra os “popcorn sellers” também bate palma pros americanos que deportam brasileiros aos lotes. Os mesmos que adoram gritar “vai pra Cuba!” não aguentam cinco minutos num boteco em Osasco sem pedir delivery de hambúrguer com nome em inglês.
— Mas voltando ao que interessa… a dependência. É o X.
Pausa. Trago na cerveja. A revelação veio sem aviso.
— O ex-Twitter. Agora é X. Aquela espelunca digital comandada por Elon Musk, o Tony Stark dos bolsominions. Aquilo ali é a minha pedra, doutor. Eu acordo e entro. Brigo com um coach, xingo um deputado, dou RT num post, e sigo o dia como se nada tivesse acontecido. À noite, repito a dose.
O doutor anotou rápido.
— Eu tô viciado em escândalo. Em surto. Em indignação sob demanda. Cada like é um gole. Cada notificação é um trago de moralismo improvisado.
— E o pior, doutor… é que eu sei. Eu sei que é veneno. Eu sei que é alienação, anglicismo disfarçado de debate público, patriotismo de GIF animado. Mas eu não consigo parar. Eu sou só mais um caramelinho digital abanando o rabo pra qualquer treta que passa.
O doutor terminou o copo dele, guardou a caneta. Só então murmurou, como quem prescreve um remédio que não se vende em farmácia:
— Talvez… um plano de redução de danos. E chamou o garçom.
— Mais uma rodada!!!
Se é pra desintoxicar do X, que seja no boteco. Onde o algoritmo é o garçom, o trending topic é a porção de calabresa, e a única polarização relevante é entre chope Brahma ou artesanal.
Fim da sessão. E começo do happy hour.
