Divã no Boteco – V
De longe, vi o doutor na mesa de sempre, com seu bloquinho de notas na mão. Eu não estava bem. Estava em choque. Passei no balcão, peguei um chope e me sentei ao lado dele. O doutor sentiu minha presença, mas sequer franziu a testa. Fui direto ao assunto:
— Doutor, o senhor acha que é grave? Sei que ainda é muito cedo, tudo aconteceu depressa demais, e apesar dos apelos, tudo me deixou assim, em estado de choque. O psicanalista tomou um gole do chope sem tirar os olhos da caderneta onde escrevia.
— Fico imaginando se não é narcisismo com transtorno de personalidade. Afinal, tudo gira em torno do próprio umbigo. A tomada de decisão é sempre um arroubo, um exagero. Ele não me interrompeu. — Eu vi no Google: a pessoa tem uma crença exagerada em suas próprias habilidades e realizações, acha que é superior aos outros, busca admiração e validação incessantemente e se frustra quando não recebe. Não se preocupa com os sentimentos dos outros, é arrogante e só se faz de bonzinho para explorar, sem remorso ou empatia. Finalmente, sem levantar a cabeça do caderninho, o psicólogo falou:
— Não, seu caso não é esse. O diagnóstico não é esse. Soltei uma gargalhada.
— Mas é claro que não, doutor! Kkkkkkkk! Ai, só o senhor mesmo para me tirar da depressão e me fazer cair na risada! Ele ainda não reagia.
— O que achou, que eu estava falando de mim? Kkkkkkkk! Pausa.
— Eu estava falando do Bolsonaro e do pessoal da Comissão de Constituição e Justiça, que, num surto coletivo, decidiu barrar o processo contra os golpistas — inclusive o chefão. Mas o senhor tem razão. Não é só narcisismo. É esquizofrenia institucional. Grave. Veja o enredo: inventaram um projeto que supostamente protege um deputado por crime cometido durante o mandato. Mas o tal Ramagem foi denunciado por crime cometido antes de assumir o cargo. Ou seja: nem maquiagem jurídica dá jeito. E não satisfeitos com o remendo, tentaram usar a gambiarra para beneficiar todo mundo do clube do golpe. Foi como se dois alunos colassem um do outro e ainda tentassem incluir o boletim do colega repetente na jogada — no caso, o próprio Bolsonaro. Aliás, esse aí já ultrapassou o narcisismo. É estudo de caso em psicopatia política. Fingiu estar entre a vida e a morte, escapou de intimações alegando estado terminal, e dois dias depois estava dando entrevista pro César Filho, de colostomia e sorriso no rosto, pedindo anistia como quem pede um pastel na feira. Minha dor, doutor, é perceber que a Câmara dos Deputados atingiu um nível de delírio coletivo que Freud recusaria analisar. É tudo tão absurdo que até o Supremo, aquele que adora tergiversar, avisou: “isso aí não cola”. O projeto é inconstitucional, ilegal, um texto de quem toma tarja preta – que só é aplaudido por loucos de manicômio. E Bolsonaro, que saiu da UTI direto pro palanque em Brasília, ainda teve a cara de pau de dizer que, se o Congresso aprovar a anistia, “ninguém tem que se meter”. Psicopata e golpista — mas com apoio parlamentar. A democracia virou refém de um roteiro de seriado de zumbis — tipo “The Walking Dead”, só que com voto eletrônico, imunidade parlamentar e oratória de coach de Telegram.
Respirei fundo, tomei meu último gole de chope e me levantei, rindo.
— É, doutor, mesmo em silêncio o senhor não erra: esquizofrenia.
Saí do bar gargalhando, e ele ainda achando que eu falava sobre mim. — Que ótima a sessão de hoje, pensei em voz alta.
