Divã no Boteco – XIX
O boteco Fale Mais Sobre Isso estava naquele clima de sempre: cheiro de chope, vozes cruzadas e o eterno cenário de terapia informal com mobília de fórmica. Na mesa de canto, lá estava ele: o Doutor. Meu psicanalista de copo, guru etílico, mestre zen do olhar julgador. Sim, aquele mesmo que no último encontro evaporou mais rápido que ética em Brasília. Pensei que tinha perdido de vez a consulta grátis, mas não — ele ressurgiu. Como herpes emocional: some, mas sempre volta.
Cauteloso, me aproximei como quem vê o nome da ex subindo no Stories com localização em Cancun. Sentei. E o primeiro susto: nada de chope. O Doutor segurava um copo laranja fluorescente, coisa parecida com post de influencer decadente.
— Doutor, que bomba é essa? — perguntei, tentando disfarçar a lembrança do “perdido” que levei.
Ele só ergueu uma sobrancelha — aquele emoji humano de superioridade passivo-agressiva.
— Aperol Spritz? — arrisquei. Claro. O drink oficial de quem quer parecer europeu mas mora com a mãe em Osasco.
Ele anotou algo na caderneta. Provavelmente: Paciente projeta insegurança em bebidas alheias. Diagnóstico: complexo de vira-lata com gelo e rodela de laranja.
Deixei quieto. Vai cutucar sumiço de analista assim na vara curta? Eu, hein. Melhor devagar com o andor — ou com o copo.
Aí, como bom paciente sem filtro, comecei a devanear.
— Doutor, por que tem gente que foge da terapia? É tipo aluno que não faz lição de casa e culpa o cachorro que queria passear… ou tipo a Zambelli, que foi parar na Itália fugindo da Justiça como se fosse numa turnê da extrema-direita.
O Doutor me lançou aquele olhar clínico que mistura tédio com decepção — o mesmo que você vê quando conta uma piada em velório.
— Fuga é autodefesa, né? — continuei. — Mas é igual cancelar o cartão achando que a fatura some. Não some e volta com juros e correção monetária.
Empolguei.
— Zambelli, por exemplo, é a Sininho do apocalipse bolsonarista. Foi condenada, se escorou numa cidadania italiana comprada no Mercado Livre e agora quer “denunciar o STF” na Europa. Denunciar o STF na Europa, Doutor! É tipo querer reclamar do SUS no Vaticano. Não faz sentido, mas é chique!
O Doutor soltou um suspiro que cheirava a “não sou pago pra isso” — o que, tecnicamente, ele não é, mesmo.
— E o Jair? — disparei. — Esse é o Peter Pan geriátrico. Finge febre, se interna pra não depor e posta selfie no hospital como se fosse influencer de polêmica. O cara é um adolescente rebelde preso no corpo de um avô ressentido com a democracia.
O Doutor rabiscava feito colunista na beira do fim do prazo. Sobrancelha em ponto de interrogação, como quem se pergunta onde foi parar a dignidade da psicanálise.
— E o mais triste, Doutor? Essa galera foge como se fosse pro carnaval em Salvador, mas acredita mesmo que vai sair ilesa. Aperol Spritz na mão, passaporte europeu no bolso e um discurso de mártir pronto. Só esqueceram de combinar com a Interpol. Zambelli se acha livre, mas tá mais enroscada que fone de ouvido velho. E o Jair? Acha que é rei da Terra do Nunca, mas parece mais líder de seita em liquidação.
A conversa azedou bonito. Fui fundo:
— Assumir responsabilidade virou peça de museu. Galileu foi preso por dizer a verdade. Hoje, a verdade é algoritmo, e ninguém quer ser responsável nem pelo próprio tweet. A culpa é sempre do sistema, do STF, do Mercúrio retrógrado. Ou do estagiário.
O Doutor agora segurava o Aperol como quem se agarra à última esperança de sanidade.
— Internet virou terra de ninguém. Se o Orson Welles fizesse Guerra dos Mundos hoje, o povo acreditava que era culpa do PT e saía quebrando torre de celular.
Finalizei:
— Doutor, aqui no boteco, ainda posso chamar o Jair de Peter Pan do golpe de Estado e a Zambelli de Wendy armada e ninguém me leva pra CPI. Só fico nervoso quando o senhor some. Aí penso: será que finalmente falei demais? Será que fugi tanto da terapia que a terapia fugiu de mim?
Ele fechou a caderneta com a solenidade de quem encerra expediente. Um gole lento no Aperol — metáfora perfeita pro Brasil de 2025: amargo, colorido, e totalmente sem noção. Fez um gesto de “relaxa, eu volto”.
E eu, como todo brasileiro cansado, pedi um chope. Porque aqui, na Terra do Nunca do boteco, todo mundo fala, ri, se ilude — mas no fim, a conta sempre chega.
