“Tablet na psicanálise” – Divã no Boteco – Crônica XX
Esse boteco deveria estar vibrante, pensei, enquanto puxava uma cadeira e me sentava à mesa onde já se acomodava o meu guru da cognição comportamental — mais conhecido como o único psicanalista que aceita consulta em troca de chope e confissões embriagadas.
Mas ele não me olhou. Estava hipnotizado. Não por uma cerveja estupidamente gelada, nem por alguma musa do balcão. Estava… com um tablet. Sim, um tablet. E eu, que já sou um ansioso nato, fiquei sem chão, mais perdido que o Elon Musk de olhos virados no Salão Oval, que Bolsonaro no depoimento do golpe frustrado.
Não era aquele indefectível bloquinho de notas amarelado, com cheiro de nicotina e frases de Freud. Era uma tela azulada, fria, clínica — como se minhas crises existenciais agora fossem pauta de reunião do Vale do Silício.
— Doutor, a tecnologia tomou conta de tudo… — soltei, com a voz trêmula de quem acabou de descobrir que o boteco virou coworking.
Ele tirou os olhos da tela e me encarou com aquele olhar de quem espera confissões pesadas, tipo planilhas secretas e gravações do tenente-coronel Mauro Cid.
— Tenho medo, doutor. Medo de um dia vir aqui em busca de acolhimento e me indicarem um chatbot chamado Woebot, criado por uma tal de Dra. Alison Darcy. Dizem que ele é empático. Mas como confiar num algoritmo que nunca chorou vendo “Central do Brasil”? Como confiar em quem nunca teve crise de identidade ao ver a conta no fim do mês?
Falei isso e quase senti o tablet julgando meu quociente emocional. Continuei:
— Me dá medo de pensar que tipo de empatia uma sequência de números pode ter com minhas dúvidas sobre o universo, se o mundo da matemática sempre foi a minha maior incógnita. E, na minha cabeça, a maçã de Newton nunca superou a fábula e passou pra próxima fase.
O doutor arqueou a sobrancelha, num gesto que só quem já ouviu mil teorias conspiratórias no boteco sabe interpretar. Era um sinal claro de “continue, que quero ver onde isso vai chegar”.
— Será, doutor, que nosso futuro é sermos Escassamente Humanos? Sem os defeitinhos que fazem a gente ser… gente? Um erro aqui, uma recaída ali, um áudio de quatro minutos no grupo errado?
— Estamos trocando a evolução da tentativa-e-erro pela inovação do envelhecimento-e-update. O progresso virou algoritmo de segurança.
Ele me olhava como quem anota tudo mentalmente, ou então como quem precisava urgente de outra dose.
— Eu sei que tá um papo cabeça de dar enxaqueca em Nietzsche, mas eu fico em pânico ao pensar no que pode nascer dessa zona de conforto propiciada pela Inteligência Artificial.
O doutor fez uma cara de interrogação.
— Porque quando o ser humano entra na zona de conforto, ele dá ruim. Come a maçã proibida, vota no Collor, acredita na capa da Veja e confia em Inteligência Artificial até para arrumar casamento. No Rio de Janeiro, o pessoal do BOPE já está tão no modo automático de subir morro que nem pergunta mais se é tráfico ou quermesse. Receberam uma denúncia, não checaram, invadiram o Santo Amaro achando que era uma quadrilha — era, mas de festa junina. O resultado? Tiroteio, tragédia, um jovem morto e cinco feridos. A sociedade em choque vai cobrar reparação. É assim que a gente amadurece, e as instituições também. Não sei se a IA evitaria esse trágico engano. Mas, de um jeito ou de outro, os humanos, na consciência da imperfeição, vão tirar uma lição desse episódio, pois nada que é humano me surpreende. Já a I.A. não para de me surpreender. Será que não teremos mais maus exemplos de como não fazer? Se bem que tem gente como Donald Trump que nunca aprende com os próprios erros, mas esse é assunto de outra enfermaria.
O Doutor respirou fundo, fechou o tablet com um leve toque. E me encarou. Aqueles segundos de silêncio me pareceram eternos — tipo o intervalo entre um voto e outro no STF.
Não aguentei e perguntei:
— O senhor… fez o que com o caderninho? Fez backup das nossas sessões? Tá tudo na nuvem? Na deep web? Num grupo de psicólogos do Telegram?
Ele não respondeu. Só levantou o dedo e fez sinal para o garçom:
— Juvenal, dois chopes. Agora.
Na minha cabeça, era o fim. A tecnologia venceu. O boteco virou consultório de startup. Eu, apenas um paciente obsoleto, incapaz de competir com o chip do GPT.
Foi então que o Doutor meteu a mão no bolso interno do paletó surrado… e de lá tirou o bloquinho. Sim, o glorioso bloquinho! Com capa de couro falsa, cantinhos mastigados pelo tempo e alma do terapeuta.
— Ainda confio mais nisso aqui do que no prompt da OpenAI — murmurou, rabiscando algo.
Respirei aliviado. A terapia etílica resistia.
— Obrigado, doutor. No futuro, só tenho uma certeza: vou precisar ainda mais dessas sessões de acolhimento no boteco. Porque entre o algoritmo e o chope, fico com o segundo. O primeiro ainda não sabe lidar com as emoções.
