Divã no Boteco – XXI

De longe vi uma aglomeração em torno da televisão pendurada na parede do Boteco Fale Mais Sobre Isso. A sessão de julgamento do golpe frustrado tava passando ao vivo e o povo vibrava como se fosse final da Libertadores.

— Kkkkkkk! Essa é boa! — gargalhava Juvenal, o garçom, equilibrando uma bandeja com dois chopes e um pastel de vento — os caras queriam prender o Moraes, mas planejaram tudo num churrasco com guaraná e salgadinho! Nem no bar a gente é tão amador!

Aos trancos e empurrões, cheguei até minha mesa de sempre, onde o único psicanalista do mundo que aceita consulta em troca de companhia de copo já tinha pedido meu chope gelado.

Suspirei fundo, sentei, olhei pra ele — que arqueou uma sobrancelha como quem diz “diga lá” — e soltei:

— Doutor… o mundo tá com uma epidemia de transtorno de personalidade borderline.

Ele mordeu o beiço e fez aquele olhar de “desenvolva, mas me poupe”.

— Sei que estou sendo exagerado, mas veja bem… os caras tramaram prender o Alexandre de Moraes e ainda tentam fazer parecer que foi só uma “conversa de bar”. De bar uma ova! No nosso bar, no máximo, a gente prende a conta! Aí vem articulista do Estadão com gel no cabelo, barriga cheia de quatro refeições diárias e diz que o país precisa de pacificação. Pacificar o quê? Desprezo não é paz, é doença! É borderline sociopolítico!

O psicanalista descruzou os braços. Sinal de que a metáfora agradou e ele queria se aproximar da conversa.

— Eles tentam fazer parecer que foi só mais um domingo de sol, com gente fantasiada de patriota. Não foi. Foi o Coringa saindo do hospital, maquiado de democracia. A diferença é que até o Coringa teve um pouco de empatia no final do filme. Já esses aí… tinham plano, método e recursos. Criam uma difusão de versões que só resta perguntar: teve minuta do golpe, sim ou não? 

— Sim ou não?! — gritei, imitando o ministro — “Pra quem você tira o chapéu, Mauro?” — e fiz a pose dramática do Raul Gil com toga imaginária.

O doutor puxou com o canto da boca. Sorriso de quem se diverte, mas não se compromete.

— Agora veja, doutor… tem casos de borderline reversível, né? Aquela falta de empatia que dá pra trabalhar com terapia, carinho e vídeos de filhote de cachorro. Mas tem uns que são caso perdido. Tipo Trump.

— Ele quer uma América de raça pura, mandou tropa pra Califórnia como se os latinos fossem invasores. Califórnia era México, porra! Que loucura é essa?

O psicanalista apoiou o cotovelo na mesa e me encarou. Era o sinal do “vai chegando no ponto de virada”.

— A verdade, doutor… é que desprezo virou política de Estado. Não precisa mais fuzil. Basta ignorar. Desprezar com classe, com metáfora. É o jornalista gourmet que fala de golpe como quem avalia safra de vinho. “Foi um golpinho seco, com notas de ressentimento e final de boca amargo.”

— E agora, com o julgamento rolando, as bolsas de apostas tão fervendo. Disseram que a condenação de Bolsonaro tá pagando menos que jogo da Loteria Federal.  Estão tão baixas que nem ajudam a substituir a garfada no IOF. Tá valendo mais apostar no Atlético Goianiense campeão da Libertadores do que no ex-capitão se safando.

— E pra completar, o advogado do general Augusto Heleno pediu pra adiar o julgamento mais importante da história recente… pra não perder o brunch. Brunch, doutor. A democracia esperando na fila e o sujeito com medo de perder a hora do croissant.

Suspirei.

— Quem sabe… quem sabe, doutor, isso não é um tijolinho? Uma pedra fundamental na construção de um Brasil civilizado. Um país que finalmente dá alta do complexo de república das bananeiras. Que manda o pai autoritário e militar pro divã. Ou pro xilindró mesmo.

O bar explodiu de novo em gargalhadas. Na TV, Alexandre de Moraes perguntava:

— E o senhor considera que esse grupo era mais radical ou apenas barulhento? Responda com sinceridade: sim ou não?

A câmera filmou o rosto de Mauro Cid, que suava como quem esqueceu o carvão aceso no cérebro. Bolsonaro olhou pro teto. O advogado tentou improvisar. E Moraes, sem tirar o chapéu nem a toga, mandou:

— Mais alguma coisa?

A mesa ao lado quase caiu de rir.

Me virei pro doutor com um meio sorriso.

— Doutor… se o Brasil sobreviver a essa epidemia de borderline institucional, juro que paro de beber. Ou mudo pra Califórnia. Mas só se me prometerem que o Trump não vai estar no brunch.

Ele sorriu pela primeira vez. Abriu a boca, e falou — coisa rara como pastel de camarão fresco em bar de esquina:

— Sim ou não?


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