Divã no Boteco XXII

Aquele era um dia especial. Encontrei meu psicanalista de boteco, que me atende, mesmo durante o momento de descanso, o happy hour.

Ele me olhou como sempre: com aquele ar de quem carrega o peso da humanidade no semblante, mas finge que está só tomando uma cervejinha. Me sentei ao lado dele e larguei, sem rodeios:

— Doutor, a gente sente um alívio danado quando vê alguém pior que a gente.

Ele arqueou uma sobrancelha, como quem pede mais.

— Veja bem… Passei os últimos meses numa paranoia. Juro. Achava que eu tinha virado narcisista. Não do tipo saudável, freudiano, que é uma etapa de desenvolvimento… Eu tava achando que tinha virado um transtorno ambulante.

O garçom chegou, e eu pedi uma dose de qualquer coisa que me lembrasse que sou só humano. O doutor assentiu com um leve aceno, como quem autoriza a anestesia emocional.

— É que eu andava me sentindo… centrado demais em mim mesmo. Me achando mais esperto que os outros. Me irritando quando não me reconheciam. Uma vez até sonhei que eu era o centro do show de Madonna em Copacabana. 

Dei um gole. Suspirei. E então sorri:

— Mas aí veio ele. O ex.

O doutor me encarou com curiosidade. Eu continuei.

— Bolsonaro. Sim. Bastou eu assistir aquele depoimento dele no STF pra eu me sentir… curado. Foi revelador. Uma sessão de terapia pública, mas com efeito contrário: me deu saúde.

O doutor deu uma risada silenciosa, só no canto da boca.

— Primeiro ele pediu desculpas ao Xandão… disse que exagerou, que o chamou de corrupto sem querer, sem pensar. Mas veja, doutor, até aí é só o ego tentando sobreviver. A máscara tentando reaparecer.

— Mas o auge, doutor, o auge… foi a selfie.

Ergui a mão como se estivesse com o celular.

— Ali, no meio do depoimento, no olho do furacão, o sujeito pega o celular e tira uma selfie pra mandar pra Michelle! É ou não é o clímax perfeito do narcisismo?

O doutor arregalou um pouco os olhos, em aprovação estética.

— Isso é mais que necessidade de admiração. Isso é uma tentativa de eternizar o próprio reflexo, no exato momento em que deveria estar enfrentando a Justiça. Freud tremeu na tumba.

— Mas aí, doutor, veio a epifania. O verdadeiro espanto. O instante em que eu percebi: “não, eu não sou esse tipo de doente”.

Tomei outro gole, dramaticamente.

— Ele sugeriu… pasme… que o Xandão fosse seu vice. Vice! Como quem diz: “já que você me ferrou, bora fazer um governo juntos.” É quase um surto. É mais que narcisismo, é um delírio. É uma dissociação da realidade. Eu vi ali um caso clínico. E me senti… normal.

O doutor fez um movimento lento com a cabeça, um meio sorriso de quem viu o paciente fazer progresso.

— E ainda chamou os golpistas de “malucos”. Os mesmos que ele alimentou, incentivou, abraçou, desfilou junto… Agora são malucos. E, veja bem, talvez sejam mesmo. Mas foi como ver o chef chamando o próprio prato de intragável.

Olhei pro copo, depois pro doutor:

— No fim das contas, doutor, o que me salvou foi esse depoimento em que Bolsonaro negou ter participado da realidade. Obrigado, Jair. Graças a você, hoje eu sei que sou só um cara normal com crise de ansiedade. E com bom senso o bastante pra não tirar selfie em depoimento.

O doutor levantou o copo, em silêncio, como quem brinda à sanidade — ou ao que restou dela. E eu brindei de volta, com a leveza de quem descobriu que tem gente maluca que consegue chegar à presidência da República. 


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