Divã no Boteco XXIII
Era um dia de sol, mas estava frio. O calor vinha da vergonha alheia — daquelas que a gente sente mesmo sem estar presente no vexame. Sentei no boteco, no meu horário sagrado de terapia de guerrilha. Ele, o doutor, já me esperava. Dessa vez, de jaleco e tudo — não sei se era branco mesmo ou se o paletó já estava assim, desbotado de tanto cloro no tanque da Dona Maria, a lavadeira que mora nos fundos do bar Fale Mais Sobre Isso. Ele me fitava com aquela paciência olímpica de quem sabe que vai ouvir absurdo, mas não pode interromper com um “meu filho, cê tá precisando é de vara, não de análise”.
A gente ficou ali, no silêncio: só o zunido das geladeiras, o estalo dos copos lavados e o tilintar de um gelo solitário implorando atenção no fundo do meu copo. Então eu disse, meio com vergonha, meio com alívio:
— Doutor… eu queria ser criança.
Ele arqueou a sobrancelha esquerda. Sinal de que aprovava a loucura que eu estava prestes a falar.
— É sério, doutor. Queria poder tocar campainha e sair correndo. Fazer pergunta besta em debate sério. Igual os deputados Nikolas e Jordy. É divertido, não é? Eles tocam a campainha da democracia e saem correndo — depois voltam só pra dizer que foi por engajamento. Querem likes, doutor. Querem ir pro TikTok do inconsciente coletivo.
O doutor pigarreou com os olhos. Imagino que isso seja o equivalente analítico a “prossiga, que esse caso está cada vez mais fascinante”.
— O Brasil, doutor, é essa família tentando resolver as contas. Junta todo mundo pra discutir o orçamento: o pai, a mãe, o cunhado editorialista do Estadão — aquele farto e estabelecido, que já chega dizendo o que tem que ser feito. Ele sabe tudo. Só não sabe abrir mão da parte dele. Quer cortar o IOF do iPhone, mas não quer contribuir com nada. Quer que os pobres paguem, com os boletos da vida, os privilégios dos que passam o dia fazendo live no YouTube.
Ele me olhava com aquele ar de paciência freudiana.
— No fundo, é tudo infantilismo psicológico. Eles não cresceram, doutor. Reagem à frustração com chilique no Congresso. Chamam ministro de moleque e depois postam no Instagram. Porque o que importa não é o debate. São 300 milhões de visualizações no vídeo. Um título chamativo. O engajamento. A criança quer biscoito — já esses deputados querem curtidas para curtir a vida.
— No fundo, querem atenção. É igualzinho a todo criminoso que quer confessar, né, doutor? Seja por culpa, vaidade ou impulso exibicionista. Às vezes é tudo junto. Igual o Bolsonaro agora: confessou o golpe, mas fez parecer que foi só uma ideia mal pensada no grupo do zap. Igual criança que joga o controle da TV na cabeça do irmão e depois diz: “foi sem querer, juro”.
O doutor deu um risinho de canto. O que, em psicanalês, quer dizer: “finalmente, um insight.”
— Mas me diga, doutor… o senhor viu a confissão do ex-presidente? Disse que pensou em golpe, mas não deu porque “não havia margem”. Como quem diz “quis muito, tentei, mas o VAR não deixou”. Isso é coisa de criança, doutor! Criança que faz merda e depois tenta convencer a professora de que “só estava brincando de república”.
O doutor pegou o copo, olhou o fundo como se buscasse um diagnóstico ali.
— E o pior… ele nem queria salvar o país, queria ser aceito. É isso, doutor! Ele queria ser aceito no mundo adulto! Mas o mundo adulto cobra responsabilidade. Cobra resultado. Cobra prestação de contas.
O doutor cruzou as pernas, como quem diz: “vá fundo, seu inconsciente tá pegando fogo”.
— Então, doutor… será que crescer é isso? Deixar de querer tocar campainha e sair correndo? Confessar os crimes, ainda que por meio de piadas do tiozão do churrasco?
No final, ele mordeu o limão da caipirinha, fez cara de azedo e falou:
— O Brasil precisa tirar as crianças da sala.
