Divã no Boteco XXIV 

O bar Fale Mais Sobre Isso estava fervendo. Sabe aquele ponto entre o happy hour e o início do apocalipse? Era esse.
Cheguei junto com o Doutor — como sempre, barba mal feita de um lado, bem aparada do outro. Entramos no boteco como quem entra num templo profano da lucidez.
Nossa mesa habitual estava ocupada. Uma mulher bonita, daquelas que parecem saber que são mais interessantes do que todo o resto do bar, reinava entre três machos em ponto de combustão. Um deles batia o copo na mesa como quem quer marcar território; outro arrumava o cabelo com a destreza de um pavão neurótico; o terceiro já ensaiava um monólogo sobre Marx só pra parecer inteligente.
— Doutor, vai dar briga — sussurrei, observando a cena como quem analisa o prelúdio de uma tragédia. Ele arqueou uma sobrancelha, cruzou os braços e inclinou o corpo como quem diz: “isso vai dar merda.”
— Já reparou que muita guerra começou por conta de uma mulher? — arrisquei, me sentindo um historiador de mesa de bar. — A de Troia, por exemplo. Tudo por causa de Helena, que, diga-se de passagem, teria milhões de seguidores hoje.
O Doutor assentiu com um olhar clínico misturado com pena.
— E pensar que antigamente a mulher tinha que ter dote e ainda rezar pra santo casamenteiro. Aí surge Santo Antônio — esse primeiro coach de relacionamento —, resolvendo tudo com um bilhete e uma balança. Parece até um ritual de venda espiritual.
Ele tirou do bolso a caderneta com a leveza de quem tira uma granada sem o pino. Anotou algo. Talvez “delírios românticos e restrição financeira”.
— Sabe, Doutor… o milagre de Santo Antônio é meio parecido com essas balanças do carcamano: pesou o papel, saiu o dinheiro, e ninguém nunca mais reclamou. Eu não estou dizendo que foi um golpe. Mas se tem gente que acredita até que o Bolsonaro pode disputar a próxima eleição… quem sou eu pra desmentir o credo de Santo Antônio.
O Doutor tossiu o chope. Sorri.
— A imprensa, então? Trata o réu inelegível como se fosse um príncipe prometido em tour diplomático. Até os editoriais parecem apaixonados… Como se estivessem disputando os dotes do ex-capitão.
Enquanto Juvenal, o garçom diplomata, apaziguava a mesa da discórdia com a habilidade de um enviado da ONU com avental, os três pretendentes se dissolveram no ar como promessas eleitorais. A musa partiu. A paz reinou. E nós dois, finalmente, sentamos.
— Chope por conta da casa — anunciou Juvenal. — A terapia hoje teve ruído emocional demais pro gosto da freguesia.
— Sabe o que me preocupa, Doutor? — perguntei, já mais leve. — Esse ódio travestido de certeza… Essa paixão pelo líder, pelo símbolo, pelo messias… Isso é fanatismo. E o fanatismo é só um ódio vestido de terno e gravata ou túnica.
Ele não respondeu, mas anotou algo. Quem sabe foi: “fanático é o neurótico que casou com o próprio delírio.”
— Olha o Netanyahu. Usando a Bíblia pra justificar o ataque ao Irã. Como se Javé tivesse virado ministro da Defesa.
Dei um gole no chope e completei:
— A verdade é que o fanatismo só entende um idioma: o do “nós contra eles”. E quando acaba o “eles”, eles se devoram entre si. Igual aqueles três que foram embora.
O Doutor respirou fundo, como quem lamenta o mundo. Eu aproveitei e gravei uma mensagem no celular como um meme futuro para as redes sociais:
“Querido Santo Antônio, se for pra unir os povos, que tal juntar Netanyahu e o líder do Irã no mesmo altar? Com véu, grinalda e rendição diplomática. Amém.”
Juvenal passou, ouviu, e comentou:
— Santo Antônio que me perdoe, mas tem pedido que nem com 400 pratas ele resolve.


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