DIVÃ NO BOTECO – XXV


Cheguei ao “Fale Mais Sobre Isso” muito antes do sol pensar em se render. Era um ruído de bar quase vazio, com som de um único copo na mesa e do ventilador de teto girando lentamente.
O bar ainda se espreguiçava, e a única companhia era a minha própria ansiedade — que, como sempre, foi a primeira a chegar e a última a ir embora. Já tinha pedido um chope e batucava os dedos na mesa como se estivesse regendo o fim do mundo.
Culpa de um pesadelo. Daqueles em 4K, com som Dolby e cheiro de fim de civilização. Nele, ouvi um estrondo. Ao sair de casa, não havia mais casa. Nem rua. Nem mundo. Só um horizonte em chamas, varrido por um cogumelo nuclear. E eu, de pijama e meia furada, inexplicavelmente vivo, preso numa vigília apocalíptica sem botão de desligar.
— Chegou mais cedo, chefe? — perguntou Juvenal, pousando com precisão cirúrgica o copo de chope com um colarinho cremoso sobre a bolacha de papelão.
— Só pra puxar assunto com meus demônios, Juvenal. E eles são péssimos de papo antes do primeiro gole.
Ele riu como quem já ouviu confissões piores e se afastou. A ansiedade só começou a ceder quando vi a silhueta do Doutor na porta. Ele entrou com a gravidade de um juiz do Supremo e sentou sem dizer nenhuma palavra. Aqueles olhos… sempre parecem que vão me internar.
— Doutor, o apocalipse começou e esqueceram de me marcar no evento — soltei, antes que ele sacasse o bloquinho. — Tive um pesadelo com a Terceira Guerra Mundial, e acordei achando que era junho de 2025 e eu era o último tolo vivo no planeta.
Ele arqueou uma sobrancelha. O sinal para eu abrir as comportas das frustrações.
— A realidade tá mais alucinada que meu inconsciente, Doutor. “A primeira vítima numa guerra é a verdade”, dizia o velho Ésquilo. Pois ela já foi cremada na “Operação Leão Crescente”. De um lado, Netanyahu, posando de Moisés 5G, abrindo o Mar Vermelho à força de míssil. Do outro, o regime iraniano, pintando Israel como Satã de terno e fuzil. É um “Game of Thrones” de turbante e quipá.
Doutor pigarreou e ajeitou-se, ligeiramente mais interessado.
— E a ironia, Doutor? A ironia é a melhor parte! Fui pesquisar e descobri que o regime iraniano, esse bicho-papão teocrático, é a consequência direta de uma gracinha da CIA e do MI6 em 1953. Eles derrubaram um democrata pra garantir o petróleo e, 26 anos depois, a Revolução Islâmica lhes deu um inimigo eterno. É o famoso “tiro pela culatra” em escala global. Pediram um poodle e a lâmpada do gênio entregou um rottweiler teológico.
Ele sacou o bloquinho. Caneta na mão. Provavelmente anotando: “Paciente apresenta delírios histórico-irônicos com tendências zoológicas.”
— E os influencers de guerra, Doutor? Os guerreiros de Wi-Fi! É evangélico defendendo Netanyahu como se fosse discípulo de Paulo, esquecendo que Israel ignora solenemente o Novo Testamento. E que, por sua vez, trata o Velho Testamento como manual de instrução bélica. O Deus dele não é amor; é um Ministro da Guerra com barba branca e ogivas nas mãos. É a teologia do míssil, versão fim do mundo.
Juvenal passou pela mesa recolhendo um copo e largou a dele:
— Cuidado com o que desejas, amigo… o apocalipse adora quem grita por ele.
De repente, um carro passou na rua tocando alto e estridente “Evidências”, de Chitãozinho e Xororó.
O refrão rasgou o ar como um míssil fora de contexto: “E nessa loucura de dizer que não te quero…”
Aquela sofrência romântica invadiu minha bolha de pânico nuclear com um tapa de brasilidade. O Doutor, sempre misterioso, deixou escapar um sorriso mínimo. Olhou em direção ao som e fez um gesto sutil: “Ouviu? Aqui não é Tel Aviv. Aqui o fim do mundo já vem com trilha sonora de chororô.”
De repente, tudo se ressignificou. A guerra, os drones, os messianismos… tudo foi encoberto diante de um verso cafona, cantado aos berros por um motorista de aplicativo que voltava pra casa. Aqui, a maior ameaça era a saideira.
Respirei fundo. O ar deixou de cheirar a radiação e voltou a ter aroma de boteco: fritura, cerveja e renúncia.
O Doutor fechou o bloquinho, olhou para o meu copo vazio e disse a única frase da noite:
— No fim, a única guerra que você pode vencer é a que acontece entre um gole e outro.
Juvenal chegou com dois chopes. O mundo lá fora ainda ardia, mas ali dentro a verdade encontrava refúgio — nem que fosse na espuma de um copo, num boteco, ao som de Chitãozinho e Xororó.


Deixe um comentário