Divã no Boteco – XXVI

O “Fale Mais Sobre Isso” estava naquela vibe de trégua no front, com mesas lotadas de advogados, motoboys, poetas e executivos — um grupo heterogêneo que bebia como se o mundo não estivesse pegando fogo lá fora. Eu, empoleirado numa poltrona alta, batucava os dedos na mesa, tentando reger esse circo sem maestro. Na TV, imagens de Tel Aviv sendo alvo de foguetes — tipo show pirotécnico, só que com menos glamour e mais cadáver. O Doutor, com sua gravidade de juiz do Supremo prestes a soltar a sentença, já sacava o bloquinho. Juvenal, o garçom, colocou um chope com espuma digna de foto no Instagram e um prato de bolinho de bacalhau, como se dissesse: “Se o apocalipse vier, pelo menos coma bem.”

— Doutor, por que diabos insistem em chamar isso de ‘conflito’? — perguntei, apontando pra TV. — Conflito é o Hugo Mota distribuindo verba com pix em emendas secretas. Conflito é a Zambelli driblando a PF. Isso? Isso é guerra de verdade, da que mata — 240 mortos. E me diga, Doutor, o que será que Deus pensa dessa palhaçada?

O Doutor arqueou a sobrancelha, soltou um murmúrio e a caneta deslizou pelo bloquinho. Eu já sabia: “Paciente em crise existencial com delírios de apocalipse.”

— Sério, Doutor, Netanyahu precisa de terapia — mas daquelas pesadas, tipo divã celestial. Imagina Deus, barbudo e entediado, sentado com Freud, Jung e Lacan num bar divino. Freud soltando que o narcisismo coletivo israelense — esse papo furado de “povo escolhido” — faz Bibi projetar dramas históricos no Irã como se fosse um filme de guerra. Jung, com café na mão, dizendo que ele é o “Pai” protetor, mas que reprime a sombra que está no inconsciente. E Lacan, todo enigmático, dizendo que os bombardeios são só pra tapar o buraco, uma distração da vida real. Deus, coitado, já pegaria o casaco e pediria reembolso.

O Doutor pigarreou, semicerrando os olhos, a caneta fez pausa: “Continue, mas com moderação, please.”

— Olha, Doutor, o Irã não é flor que se cheire, mas por que provocar o vespeiro? Netanyahu, que já brigava no quintal — em Gaza e Cisjordânia — agora resolveu destruir Teerã. É como jogar pedra na janela do vizinho e reclamar do barulho. E ele ainda se acha o sábio.

Juvenal voltou com frango a passarinho, aquele olhar de “relaxa, ainda não é o fim.” Eu, já na terceira rodada de chope, começava a me alterar.

— Doutor, o mundo está dividido entre ódio e clemência, e nas redes sociais? Um circo: pró-guerra contra pró-paz — e a paz é como aquele primo metido que só aparece depois da pancadaria. Tem gente pedindo pro Netanyahu “dar um jeito” no Alckmin. Fala sério, Doutor! Justo o Alckmin com aquele ímpeto de um picolé de chuchu. E quem tá financiando essa guerra? Será que tem PIX pro apocalipse? Tipo aquela vaquinha do Dudu Bananinha, que no meio disso tá stalkeando deputados gringos pra falar mal do Moraes?

O Doutor ajeitou os óculos, suspirou fundo e a caneta voou no bloquinho. Eu já sabia: “Paciente mistura geopolítica com reality show.”

— Aqui no Brasil, Doutor, a guerra é outra, mas não menos absurda. Sicupira, o quinto mais rico do país, com seus R$ 45,7 bilhões, acha que Bolsa Família é mimo pra povo “coitadinho” e que saúde e educação são frescura. As Americanas explodiram um rombo de mais de R$ 20 bilhões, um escândalo colossal que ninguém sabe direito como termina, mas o Sicupira fala que nunca seremos os Estados Unidos por causa da impunidade. Mas que cinismo! O cara sonha em ser americano, mas culpa a gente — com nossos direitos chatos — pelo atraso. Sicupira no divã? Freud diria que ele tem inveja do Tio Sam, e Jung que ele projeta sua sombra no povão.

Juvenal voltou, agora com a cara de quem ouviu demais. “Desculpa atrapalhar a sessão, mas tem uma mesa pra dez aqui do lado, pode encaixar?”

— Se vierem em missão de paz, Juvenal, pode pôr — respondi, enquanto a TV mostrava mais explosões. O Doutor, impassível, fechou o bloquinho e soltou sua única frase:

— A paz não espera a guerra acabar, mas você precisa parar de brigar com o mundo pra encontrá-la.

O chope chegou, a mesa ao lado ria alto, e por um instante o “Fale Mais Sobre Isso” virou um oásis no meio do caos. Lá fora, o mundo queimava. Aqui dentro, entre goles e sarcasmo, a verdade ainda respirava — pelo menos enquanto tivéssemos espuma no copo.


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