Divã no Boteco XXVII

O sol batia no deck do Fala Mais Sobre Isso, o boteco que, como uma Suíça etílica, acolhia de deputados a poetas, de executivos a encanadores — todos em trégua tácita, unidos pelo chope gelado e pela sabedoria de balcão. Lá fora, crianças pedalavam bicicletas em ziguezague, rindo como se o mundo fosse só alegria e picolés. Eu, no meu divã estilizado — uma cadeira de encosto alto que gritava “terapia de boteco” —, encarava o doutor, que, como sempre, parecia uma estátua pensante, com seu bloquinho no bolso e um olhar de quem decifra almas entre um gole e outro. Juvenal, o garçom-filósofo, circulava com uma bandeja de batata frita e um comentário afiado na ponta da língua.

O silêncio entre nós estava mais longo que de costume. O doutor, com sua paciência de Jó misturada com Freud, tamborilava os dedos na mesa, esperando eu desenrolar. Peguei meu chope, dei um gole demorado, e finalmente soltei:

— Doutor, o mundo adulto não sabe se divertir.

Ele ergueu uma sobrancelha, murmurando um “humm” que parecia dizer “fala mais, seu maluco”. As crianças lá fora riam, pedalando sem destino, alheias ao noticiário que pesava na minha cabeça.

— Olha essas crianças, doutor. Elas brincam, se jogam, caem, levantam, riem. Sabem o que é diversão de verdade, tipo correr atrás de uma bola ou fingir que são super-heróis. Agora, os adultos? Só sabem comemorar destruição. É como se a gente quisesse voltar pro tal do estado inorgânico que o Freud falava, sabe? Pulsão de morte, Thanatos, esse papo todo. Parece que a humanidade adora um caos, desde os tempos dos romanos, que saíam conquistando meio mundo pra trazer escravos e ouro pra tapar o buraco das crises internas. E hoje? Mesma coisa, só que com drones e manchetes.

O doutor anotou algo no bloquinho, com aquele ar de quem já ouviu essa ladainha mil vezes. Juvenal, que trazia mais uma rodada de chope, deu seu pitaco inevitável:

— É isso, chefe. No Brasil, a mesma coisa. O Congresso faz guerra, mas nunca é a nosso favor. É a favor deles mesmos.

— Exato, Juvenal! É tudo um grande engodo. Olha só, doutor, o Trump e o Netanyahu, por exemplo. Consegue imaginar os dois brindando alguma coisa que não seja a desgraça alheia? Parece que quanto mais crise tem dentro de casa, mais confusão arrumam lá fora. Trump sai do G-7 mais cedo, ameaça o aiatolá no Truth Social, exige rendição incondicional, fala em bombardear usinas nucleares no Irã. E pra quê? Pra desviar o foco da bagunça interna, unir o povo contra um “inimigo” e, de quebra, garantir uns contratos pro complexo militar-industrial. É a Roma moderna, doutor! Os romanos faziam isso: brigavam entre si, aí saíam pra conquistar a Gália, trazer escravos e acalmar a plebe. Hoje, é a mesma coisa, só que o butim é petróleo, influência e manchetes.

O doutor fez um “humm” mais grave, coçando o queixo. As crianças continuavam pedalando, e uma delas, um moleque de uns dez anos, parou a bicicleta na nossa mesa.

— Tio, me paga um sorvete?

Olhei pro garoto, desconfiado.

— Tu tá indo pra escola, moleque?

— Tô, tio! Mas escola sem celular é tipo o mundo sem diversão.

— Como assim? Tu não tá se divertindo aí na bike?

— Tô, claro! Mas queria jogar um Call of Duty: Warzone. É brabo, tio!

Juvenal, que ouviu tudo, riu e gritou:

— Pode deixar, molecada, a rodada de sorvete é por minha conta!

Enquanto o garoto saía pedalando, feliz com a promessa do sorvete, eu me virei pro doutor, já com o sarcasmo na ponta da língua.

— Tá vendo, doutor? Até as crianças já tão viciadas em jogos de guerra tipo Call of Duty. Desde pequeno, o mundo enfia batalha na cabeça delas. E os adultos? Só trocam as armas de brinquedo por mísseis de verdade. A imprensa ajuda, né? Aqui no Brasil, é tudo a favor de Israel, pintando o Irã como o vilão que ameaça o mundo. Com todo respeito, doutor, as mulheres lá usam burca, o regime é teocrático, mas mísseis iranianos? É a primeira vez que vejo isso. E sabe o que é pior? Todo mundo cai na mesma narrativa de sempre: “o Irã tá a cinco anos de ter a bomba atômica”. Faz trinta anos que Israel repete essa lorota! E quem foi o único que jogou bomba atômica em cima de alguém? Hein? Fala sério, doutor! É sempre a mesma história: armas químicas no Iraque, terroristas no Afeganistão… qualquer mentira vira motivo pra guerra.

Juvenal, trazendo mais batata frita, completou:

— É como eu disse, chefe. Engodo. No Brasil, é emenda parlamentar. Lá fora, é “ameaça nuclear”. Tudo pra manipular a gente.

O doutor, agora com um olhar mais sério, rabiscava furiosamente no bloquinho. Eu continuei, já embalado:

— No final, doutor, somos todos reféns de uma guerra psicológica. A mídia, os políticos, os generais… todos querem que a gente escolha um lado, pegue uma bandeira, odeie o outro. É o tal do “narcisismo das pequenas diferenças”, sabe? A gente briga por detalhes idiotas e esquece de olhar o que tá realmente acontecendo. Essas guerras, sejam as dos romanos ou as de hoje, não são só por petróleo ou escravos. São pra manter a gente na linha, distraído, enquanto os poderosos enchem os bolsos. E o pior? A gente nem percebe. Demora pra sair da bolha, pra ver que tá sendo manipulado.

O moleque voltou, agora com um sorvete na mão, e gritou, rindo:

— Cuidado com minha bike, tio!

— Cuidado com a guerra, moleque! — respondi, meio brincando, meio sério.

O doutor parou de escrever, me encarou por um segundo, e, num raro momento de intervenção verbal, soltou uma única frase, com aquele tom de quem acabou de decifrar o universo:

— A guerra começa quando esquecemos como brincar.

Fiquei mudo. Juvenal deu uma risada, jogou o pano de prato no ombro e voltou pro balcão. Lá fora, as crianças continuavam pedalando, alheias ao peso do mundo. E eu, no meu divã de boteco, só consegui pensar que, talvez, o doutor tivesse razão.


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