A GUERRA E A PARADA LGBT DURANTE A SESSÃO DO PACIENTE NO BOTECO FALE MAIS SOBRE ISSO

DIVÃ NO BOTECO – XXVIII


Eu estava sentado no meu divã de sempre — uma cadeira de plástico azul com encosto afrouxado — quando vi a notícia pipocar na TV pendurada entre duas garrafas de cachaça e um pôster do Garrincha. Os Estados Unidos tinham bombardeado o Irã. De novo. Ou ainda. Não sei mais. Parecia replay com data nova.

Estiquei o pescoço. A televisão do “Fala Mais Sobre Isso” anunciava o ataque com aquela entonação de quem narra um gol. Parte dos frequentadores mal piscava; a outra metade ria, bebia, e falava sobre o preço da gasolina ou do último vexame do time do coração no Mundial de Clubes.

Ali, naquele pedaço de Brasil em forma de mesa de bar, conviviam golpistas com nome de coaching, policiais de folga, operadoras da Bolsa e operadores do jogo do bicho, garotas da noite tomando suco detox e evangélicos tomando suco de uva com gelo. E eu, o ansioso de sempre, sentado diante do meu psicanalista inabalável, estoico — o Doutor — que fazia o favor de não fugir mesmo quando o mundo estava prestes a acabar.

Ele me encarava com aquele olhar de quem já ouviu coisa pior — provavelmente minha infância — e deslizou lentamente o bloquinho do bolso do paletó. Anotou. O bloquinho descia sempre no momento certo, como o tapa do final de novela.

“Doutor…”, comecei com a respiração presa, “…por que eu não consigo ignorar isso como todo mundo? Por que essa porra de guerra me persegue até o boteco? Por que eu sou o para-raio das más notícias do mundo, hein?”

Ele murmurou algo entre um “hmm” e um “é mesmo?” e cruzou as pernas. Eu tamborilava os dedos na mesa, balançava a perna como se tivesse um metrônomo demoníaco dentro de mim. A angústia era um grito sem som.

Do lado de fora, a Parada LGBTQIA+ passava. Aquilo sim era um espetáculo de vida. Um sheik com cabelo laranja cruzou a rua sambando, e por um momento tive certeza de que era o próprio Trump reencarnado em paródia.

— Juvenal, um chope e uma porção de batata, por favor. E vê se põe um pouco de Rivotril nessa espuma.

Ele riu, serviu, e cochichou:
— A guerra tá lá fora. Aqui dentro, o único tiro permitido é no fígado.

Mas eu não conseguia relaxar. Minha cabeça girava. E se Trump, esse narcisista de topete entupido de spray, tivesse apenas um recalque mal resolvido? Um trauma de infância? O menino rico que nunca ouviu “eu te amo” do pai e cresceu precisando explodir países pra se sentir notado. Um ataque desses não é política, é birra com míssil.

— Doutor, será que se ele tivesse saído do armário, teríamos evitado três guerras?

O doutor arregalou uma sobrancelha. Anotou. Silêncio.

O mais doído é que vivemos na economia da atenção. E pra chamar atenção, hoje, só sendo monstruoso ou pelado. Veja o Bolsonaro desmaiando em UTI, ressuscitando no palanque, depois desmaiando de novo quando o Datena liga. 

E no Irã? O aiatolá prometeu “retaliações irreparáveis”. Que palavra bonita. Retaliações irreparáveis. Parece nome de perfume.

Um homem nu, coberto só com uma burca estilizada, cruzou o salão. Foi vaiado por um grupo de moralistas que minutos antes estavam tirando foto com uma drag vestida de Papa. O mundo já não sabe mais o que é protesto, paródia ou provocação. Tudo virou gatilho.

Mas ali, naquele instante, me ocorreu: talvez o equilíbrio entre o caos e o cosmos seja esse. O bar como zona de trégua. A parada como alegoria de resistência. A guerra como vício dos narcisistas. E eu… um analista de mim mesmo, tentando transformar angústia em crônica.

Do lado de fora, a batucada da Parada abafava os trovões da CNN. Os trios elétricos passaram com sheiks de salto agulha, soldados com purpurina e até um carro alegórico com um Trump inflável sendo beijado por um Fidel de espuma. Aquela barulheira curou meu colapso.

Suspirei fundo. A respiração finalmente desceu até o fim do pulmão.

O doutor pousou o bloquinho, olhou bem dentro dos meus olhos e disse, com a gravidade de quem fala pouco:

— A angústia não se cura, se elabora.

Juvenal, como se tivesse ouvido o veredicto de um oráculo, trouxe outro chope.

Brindamos.

Porque se o mundo vai explodir, que seja ao som de um tamborim e com batata frita.


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