Divã no Boteco – XXIX
Entro no Fala Mais Sobre Isso, meu santuário de chope e confissões, onde o mundo lá fora – com suas guerras, intrigas e hashtags de indignação – pausa por um instante, como se todos fôssemos reféns de uma trégua etílica. Aqui, ninguém é inimigo. Somos todos cúmplices do mesmo copo.
A televisão, essa divindade analógica que a internet prometeu crucificar, segue reinando na parede, cuspindo a novela do momento: Juliana Marins, a brasileira que escorregou num vulcão na Indonésia e agora é a protagonista involuntária de um reality show global. Drones zumbem, helicópteros hesitam, influencers narram cada pedra da encosta como se fossem poetas de tragédia.
O Doutor, meu psicanalista de balcão, está na sua pose de Buda feliz: óculos tortos, silencioso como faca afiada de churrasco e aquele bloquinho confessional no bolso, pronto para registrar minhas neuroses como se eu fosse um experimento de Freud com vodka.
Juvenal, o garçom que parece ter lido Platão entre um pedido e outro, desliza até a mesa com uma Brahma gelada e um prato de azeitonas.
— Está acompanhando a saga da Juliana, doutor? — ele pergunta, com o tom de quem já viu o mundo acabar e ainda serviu o último chope.
— O Twitter virou central de resgate, o Instagram está em looping com vídeos de drone, e a família pedindo oração. Só falta o Papa fazer live — eu continuo. O Doutor ergue uma sobrancelha, faz um “tsc” e anota. Eu sei que ele está me dissecando, mas finjo que o alvo é o vulcão.
— Doutor, a gente assiste ao resgate da Juliana como se fosse a final da Copa, torcendo para a redenção chegar de helicóptero. Mas no fundo, não é ela que a gente quer salvar. É a gente mesmo, que está preso num vulcão de desumanidades, contas, culpas e likes.
O Doutor inclina a cabeça, solta um “hmmmm” que parece um réquiem e rabisca mais. Deve estar escrevendo que o paciente confunde Netflix com salvação.
A TV atualiza: neblina no Monte Rinjani, helicóptero em stand-by, socorristas pendurados em cordas como aranhas em teia de pesadelo. Na mesa ao lado, um cara de terno amassado resmunga “que absurdo!” com a boca cheia de calabresa.
Eu viro para o Doutor:
— Sabe o que é, doutor? A esperança é um veneno doce. A gente acha que ela vem do céu, como maná ou como um drone da Amazon com kit de salvamento. Mas na real, resgatar dá trabalho. E a gente prefere torcer sentado no sofá.
— É isso, a Juliana caiu no vulcão, e o mundo parou. Até as notícias de bombas entre Israel, Irã e os EUA deram uma trégua para o resgate da Juliana. Sabe por quê? Porque é a única coisa que ainda nos faz sentir humanos. O resto é só grito, bomba e acareação.
O Doutor coça o queixo, faz um “humm” que soa como um veredicto e anota. Eu continuo, afiado pelo sarcasmo:
— A gente quer redenção, pela verdade, quer absolvição das cagadas que fazemos, mas temos medo da verdade. Quando se está pendurado na boca do vulcão todo mundo foge à procura de um leito de UTI ou de uma acareação com o Mauro Cid, como Braga Netto se apegando à imaginação para distorcer a verdade de uma caixa cheia de dinheiro para organizar atentados contra autoridades.
— E os drones, doutor? — eu provoco. — Meu amigo alertou que a gente inventou drone para entregar pizza, filmar stories, lançar míssil. Mas não para salvar. Drones de guerra não fazem resgates. São kamikazes de GPS, programados para destruir e sumir. A tecnologia é nosso espelho. Queremos a redenção, mas não construímos nada para nos salvar de nós mesmos.
— Como pode um grito por socorro virar desentendimento? A gente quer redenção, mas confunde com vingança. Quer paz, mas acha que ela vem com a derrota do outro. E a Juliana morre lá, no vulcão, enquanto a gente vibra com joinha em live.
O Doutor para de escrever. Fecha o bloquinho com um estalo seco, que ecoa mais que um trovão. Olha para mim por cima dos óculos e diz:
— A redenção é o que você espera enquanto o resgate não chega.
Silêncio. Até Juvenal, que já ouviu de tudo, para com a bandeja na mão. E eu penso em voz alta:
— Haverá um drone a nos redimir?
