DIVÃ NO BOTECO – XXXI

Entro no Fale Mais Sobre Isso como quem leva uma rasteira no meio da faixa de pedestres. Sangue fervendo, alma em brasa. Juvenal me vê da porta e nem pergunta: traz direto o combo sagrado — manjubinha crocante e chope estupidamente gelado, que chega espumando mais que a timeline em dia de escândalo político.

— Doutor, me responde com franqueza: o que a gente sente quando é traído?

Ele só levanta uma sobrancelha, como se dissesse fala mais sobre isso no idioma dos monges tibetanos.

— Não, sério. Ser traído é tipo: você confia, entrega, aposta… e a pessoa devolve uma jaca. É levar um tapa quando tá escovando os dentes. É igual quando você tá jogando truco em dupla e descobre que seu parceiro tá soprando carta pro adversário. Mas o pior, doutor, o pior mesmo… é ser traído no café da manhã.

Juvenal, que agora esfrega o balcão como quem esfrega a consciência, larga uma daquelas máximas que ele deve ter lido em parachoque de caminhão:

— Olha, meu amigo, como já dizia o sábio Maquiavel, a traição só vem de amantes, amigos ou aliados, porque do inimigo a gente já espera o pior.

Pego a manjubinha como quem ergue uma espada.

— É ISSO! Ela vem de dentro. Da aliança. Do núcleo duro. Tipo o Hugo Motta virando as costas pro Lula como se o Planalto fosse grupo de zap e ele resolvesse sair sem avisar.

O doutor anota qualquer coisa no bloquinho. Eu sigo, chope à mão, indignação no peito:

— O cara suspende um decreto vital pro governo — oxigênio puro! — só pra liberar emenda. Me diz: isso é política ou é chantagem de adolescente carente? Porque, se fosse relacionamento, seria tipo aquele amigo que diz que vai no seu aniversário e, na hora, posta story num luau em Trancoso com a legenda energia é tudo. Covardia!

O doutor inclina a cabeça como quem diz vai fundo, desabafa, tá rendendo.

— E o Lula, hein? Deve tá se sentindo como cantor sertanejo que acorda e vê o parceiro lançando álbum solo no Spotify. É como se o cara tivesse apostado tudo na parceria e, de repente, ouvisse: não é você, sou eu… e minhas emendas.

Pausa dramática. Eu olho pro doutor, mastigo a indignação junto com a manjubinha e abaixo o tom:

— Mas não é sobre o Lula. Não só. É sobre mim.

Juvenal para de limpar o balcão, como quem fareja o momento da revelação.

— Tá dizendo que foi traído também? Por quem? Ex? Governo? Receita Federal?

Eu suspiro. Fundo. Como quem tá prestes a contar que o Papai Noel vai sair do grupo.

— Foi o Estadão, Juvenal.

— O meu jornal de cabeceira. Acordo cedo, preparo o café, me sento como quem vai meditar com um monge editorial… e o que me servem? William Waack analisando a derrota do governo com o argumento etário: que a traição do Congresso é porque o Lula é velho. Velho, doutor! Como se a idade avançada fosse solvente de articulação política. Porra, pergunta pro Sarney? Waack lustrou, empacotou e vendeu preconceito como se fosse tese weberiana. Ou seja, pagar assinatura pela análise política do Estadão tá parecendo o golpe do desconto em folha dos aposentados: te prometem um clube de vantagens, mas te entregam uma fraude intelectual.

O doutor, que até ali só rabiscava, me dá aquele meio sorriso de quem viu a ferida exposta.

— Etarismo travestido de análise política. E vindo de quem, doutor? De um cara que já teve a juventude confiscada pelo Collor e ainda acha que é o menino do café da manhã da FIESP.

E tem mais. Claro que tem.

— Outro texto, mesma gazeta: O Brasil vive um parlamentarismo informal. O quê? Isso é análise ou workshop de astrologia? Ou é ou não é! Dizer que vivemos um meio parlamentarismo é igual dizer que meu chope tá meio gelado. Isso não existe.

O doutor deixa o bloquinho de lado. Me encara. Eu tô quase tremendo de raiva.

— Doutor, é traição. Eu esperava um jornalismo que iluminasse. Esperava crítica inteligente, recebi tweet com MBA. É por isso que dói. Porque não é o TikTok. Do TikTok eu já sei que vem dancinha, desinformação e receita de mousse de Leite Moça. Agora… jornal? JORNAL?

O boteco pulsa. As vozes aumentam. A vida segue. Mas entre eu e o doutor, o tempo para.

Ele respira. E me solta a frase única da sessão:

— Quem entrega opinião rasa em nome da profundidade cava o próprio descrédito.

Pimba. O silêncio me invade como uma epifania alcoólica.

Juvenal chega com outra rodada e mais uma frase de meme da internet.

— Como poderia dizer Shakespeare: a desnestidade intelectual de um articulista é a facada mais cruel de todas.

Eu levanto o copo e brindo com o doutor, com o Juvenal, com o boteco todo.

Porque, pelo menos ali, entre uma dose e outra, a verdade senta à mesa e faz companhia, sem disfarce.


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