DIVÃ NO BOTECO – XXXII
Eu quase desisti na porta. O “Fale Mais Sobre Isso” estava mais disputado que fila de degustação de cerveja artesanal no aniversário do Choquei. Precisei driblar mesas, cotovelos e bundas alheias até chegar ao doutor, que estava ali — firme como sempre — com copo de whisky de um lado e a indefectível caderneta do outro. Ué, trocou o chope por bebida quente? Pensei. Meu inconsciente me soprava: havia algo estranho com o doutor. O olhar dele… não sei. Por um instante, achei que o meu psicanalista de boteco estivesse… frustrado.
Contive o impulso de perguntar diretamente e, como quem comenta o tempo, soltei:
— Doutor, como a gente lida com a frustração?
O doutor franziu a testa, mas antes que qualquer gesto pudesse ser interpretado, um burburinho se ergueu no fundo do boteco, vindo de um grupo de moças de decote generoso e autoestima turbinada que cercavam um rapaz. O motivo era completamente improvável — e ainda mais raro: o sósia do Neymar agitava o fundão do meu boteco-clínica.
Eu também não acreditava no que estava acontecendo. Afinal, o sujeito não se parece com o Neymar nem depois de cinco horas de sessão regadas com generosas rodadas de caipirinha. Mas lá estava ele, cercado de fãs: influencer de si mesmo, subcelebridade de um submundo onde talento é opcional e carisma se mede por engajamento.
— Quem é ele? — perguntei ao Juvenal, que equilibrava um balde de gelo e uma porção de manjubinha.
— É o quase-Neymar — respondeu. — O verdadeiro tá fora, se recuperando. Esse aqui tá em todas: SBT, RedeTV, podcast de macho alfa. Já ganhou até o Luciano Hang como seguidor.
— Quem diria Juvenal, disse.
— Doutor, aquilo ali é um prato cheio de frustração. Para os seguidores, claro. Porque para o sósia, aquilo é sinal de sucesso. É o ápice do improviso brasileiro. Mas e o Neymar verdadeiro, doutor? Esse, sim, parecia atravessar uma crise.
— A pesquisa Datafolha mostra que 48% querem ele na seleção. Mas 41% não querem. A diferença? Margem de erro. Ou seja: o país tá dividido até nisso. Gente torcendo pela volta do craque e gente torcendo pela aposentadoria precoce. Mesmo com todo o dinheiro que tem, deve doer ser o Neymar e perceber que o país não tem certeza se te quer de volta.
E por falar em dinheiro, na Paulista teve ato do bolsonarismo com a presença de bolso e mala — Malafaia e Bolsonaro — e nem assim conseguiram reunir mais gente do que o bar lotado por um sósia.
— Eu me pergunto, doutor, o que é frustração para esse povo? Talvez seja ver que a Forbes ainda não colocou o nome deles ao lado do Lehman ou do Sicupira. Gente que sonha com cifras e acorda com CPI.
— Olha uma parte deles ali, vestindo verde e amarelo, assediando o cosplay do Neymar por uma selfie e um abraço — apontou o Juvenal, sem tirar o pano do ombro.
— Doutor, a geração mais nova parece incapaz de tolerar uma espera. Um pedido no iFood que demora três minutos a mais já é crise existencial. Deputado mirim, tipo o Nicolas, quer emenda liberada no Pix, já! Frustração pra eles é não viralizar o story. E enquanto isso, os filósofos corporativos nos recomendam “resiliência” como se fosse aplicativo, um serviço de Uber emocional ou 99Resiliências, com desconto no final de semana. Escolha seu coach, defina sua rota e… boa sorte na terapia por assinatura.
— Mas, doutor, como adquirir resiliência se não há mais espaço pra errar? Se a Inteligência Artificial já escreve o texto, calcula o imposto e responde ao crush com três opções de emoji e duas de flerte? A frustração hoje é não tirar a selfie certa com o sósia certo.
Ou ser dispensado por uma mulher que só existe nos servidores da OpenAI.
A amiga da minha sobrinha, linda, 22 anos, influente. Tá arrasada. Foi ultrapassada por modelos feitos por IA — mulheres perfeitas, de beleza inatingível, que nem espinhas têm. Como competir? Ela não está frustrada com os outros. Está frustrada com o impossível. Frustrada com o algoritmo.
Foi aí que o Juvenal voltou e soltou a bomba:
— Parabéns, doutor. A entrevista na revista ficou top. O senhor é mesmo o psicanalista do ano!
Ah… então era isso, pensei. Ele não estava frustrado. Estava celebrando. Mas de um jeito estoico, elegante, quase britânico. Sem dancinha, sem sósia, sem live.
Eu sorri, também pedi uma dose de whisky e confessei:
— Doutor, eu também comemoro quando atinjo uma meta. Se bem que isso não acontece há algum tempo. Mas só de estar aqui, sendo atendido pelo psicanalista do ano, já é um golaço na minha autoestima.
Foi aí que um grupo com a camisa da seleção saiu frustrado, chutando tampinha de garrafa e xingando o bar inteiro.
— Isso aqui é Brasil, porra. Tô indo embora! O cara nem é o Neymar de verdade. Boteco de merda!
E eu pensei: esse pessoal acredita em qualquer coisa. Menos que a frustração pode ensinar.
O doutor, enfim, ergueu os olhos do bloquinho. Ajeitou os óculos. E disse, quase num sussurro:
— A frustração é a mãe da maturidade.
E eu, por um instante, me senti adulto.
