DIVÃ NO BOTECO – XXXIII
Cheguei ao Fale Mais Sobre Isso com o coração disparado, batendo mais rápido que fake news em grupo de família. O doutor estava ao meu lado, impassível, com aquela cara de quem já decifrou o inconsciente coletivo da nação.
O boteco fervia. Dentro e fora, o caos era tão democrático que você via um investidor da Faria Lima discutindo com um entregador de app se o fim do mundo seria comunista ou privatizado. Camisas verde-amarelas misturadas a ternos amarrotados e crocs de guerra. Ninguém sabia mais se estavam torcendo pra seleção ou pra volta do AI-5. Mas ali era zona neutra — o único lugar onde um ex-bolsonarista e um ex-esquerdomacho podiam dividir uma porção de manjubinha sem sair no tapa.
Juvenal, o garçom, aquele dramaturgo frustrado disfarçado de balconista, já tinha nossa mesa cativa. Tava com a toalha no ombro e o olhar de quem já atendeu Freud e Lacan num happy hour.
— Cerveja gelada e manjubinha, como sempre? — perguntou, sem fingir que era pergunta.
Assenti, meio aéreo. — Doutor, uma dúvida existencial: eu sou manipulável? Tipo, nível zap-zumbi? Dá pra confiar que minha opinião é mesmo minha ou eu só reproduzo o meme do último idiota com wi-fi?
O doutor só ergueu a sobrancelha. Traduzindo: “continue, que agora vem o diagnóstico clínico”.
— Olha lá fora, doutor! Todo mundo quer manipular alguém! Influencer, político, pastor com cenário de chroma key, coach de sucesso financeiro com fundo de palmeiras de plástico… É uma guerra de narrativas, onde o único inocente é o idiota que acredita que não está sendo manipulado.
Juvenal trouxe as cervejas e pousou os copos na mesa como quem deposita provas de um crime.
— Isso aí é poder simbólico, meu jovem — disse, num tom Bourdieu de botequim. — Quem domina o medo, domina a pauta. E quem controla a pauta, leva o orçamento.
— Isso! — eu disse, batendo a mão na mesa como quem descobre a América. — É tudo disputa de símbolo, doutor! A camisa da seleção foi sequestrada. A palavra “liberdade” virou senha pra golpe. Até o IOF virou instrumento ideológico! Em vez de taxar banco, bilionário e bet, o Congresso inventa que o rombo é culpa do cafezinho do povo! E o pior: o pobre acredita! Defende banqueiro como se fosse herdeiro da XP!
O doutor rabiscava como se estivesse decifrando meu ego em QR Code. Eu seguia, possuído:
— O governo tenta reagir com vídeo de “99% contra 1%”, mas a galera tá em transe! Acha que quem usa cueca vermelha é inimigo. Acreditam que o apocalipse vem junto com o final da temporada da Netflix. E o herói salvador? Chega direto da UTI, montado num jet ski branco ou num helicóptero com sirene de emergência!
Juvenal trouxe a manjubinha e largou a pérola:
— Tudo agora é terrorismo. Chamar pobre de terrorista virou estratégia de elite. Assusta, desmobiliza e ainda dá moral pra discurso de “lei e ordem”.
O doutor só anotava, mas eu já tava num nível de paranoia política que nem a CIA conseguiria me monitorar. — E sabe o que é mais doido? O que funciona não é a verdade, é o enredo. A história. O script coletivo do medo. É só incitar com um “nós contra eles”, um “inimigo oculto”, um “mito”, um “dragão comunista”, ou um “deus acima de todos”. É arquétipo puro, Jung se revirando na tumba, doutor!
Foi quando aconteceu.
Uma garota linda se aproximou da mesa. Devia ter uns vinte e poucos, um ar de yoga, cropped com frase empoderada e celular na mão. — Desculpa atrapalhar, mas… vocês são os dois do “podcast do Divã no Boteco”?
Eu e o doutor trocamos olhares. Eu confuso, ele… debochado.
— A conversa de vocês me abriu os olhos. Tipo, real. Eu vivia presa a algoritmos, achando que opinião era sinônimo de identidade. Mas agora eu entendi que era tudo manipulação! Tô me libertando. Parei de seguir coach, apaguei o TikTok e até desfiz meu namoro com um “patriota”.
Ela tirou uma selfie com a gente, sorriu emocionada e foi embora, deixando um rastro de lavanda e dissonância cognitiva.
O doutor, finalmente, ergueu os olhos e disse, com a voz calma de quem já viu muita tragédia grega:
— O manipulador, meu caro… nem sempre é o outro. Às vezes, está no reflexo do espelho que a gente evita olhar.
Juvenal travou no meio do bar com a bandeja no ar, como se tivesse presenciado um milagre ou um colapso nervoso coletivo.
Fiquei ali, parado, encarando meu copo, sentindo meu ego ruir como prédio da MRV em zona de risco. Era sobre mim. Sempre foi sobre mim. O medo, a raiva, o meme, o voto, a dúvida. Tudo operado pelo ZAP do apocalipse que mora dentro da minha cabeça.
E quando achei que tinha chegado ao fundo do poço filosófico, Juvenal sussurrou:
— Ah, só pra avisar… aquela moça pediu uma caipirinha artesanal, duas entradinhas veganas e tá mandando colocar na sua comanda.
Olhei pro doutor, depois pro céu, depois pra conta.— Manipulado e agora endividado, doutor. Quanto custa sair da bolha?
— Hoje? — respondeu ele, rindo. — Sem ajuste fiscal, uns 38% a mais.
