Divã no Boteco – XXXIV
— Boa noite, querido! — disse Doralice, me dando um tapinha nas costas com o mesmo entusiasmo de quem acabou de descobrir uma teoria da conspiração nova no Telegram.
Ela usava um penteado laranja-cenoura estilo Trump em dia de faniquito e um colar que devia pesar mais que a taxa de juros na dívida pública. Carregava uma bolsinha com a bandeira do Brasil e, antes de sair do Fale Mais Sobre Isso, ainda disparou a provocação de sempre:
— Fica com Deus! Fora Lula! E fora também esse Congresso vendido… enfim, tudo farinha do mesmo saco!
Deu um beijo estalado no ar, acenou como quem se despede de um comício imaginário e saiu rebolando calçada afora, parecendo a própria alegoria do 7 de setembro, em direção a um jipão blindado com adesivo “Ordem e Progresso ou Morte”.
O doutor, ao meu lado, ergueu uma sobrancelha como quem pergunta “quem é a entidade?”.
— Doralice, vizinha do 401 — expliquei. — Da turma patriota. Daquelas que se acham super ricas, que pintam a escadaria do prédio de verde e amarelo, pedem a ditadura, mas chamam de “vandalismo” quando o MST planta alface. Vive em campanha contra o Lula. Uma fixação patológica.
— Hum Hum — reagiu o doutor, anotando algo que parecia uma sentença silenciosa.
— Mas veja a ironia, Doutor. Essa semana, Doralice começou a compartilhar uns posts atacando o Congresso, aqueles mesmos que vêm direto de gabinetes governistas. Sem perceber, está fazendo o jogo do Planalto. Ou seja: sem querer, virou… uma lulista funcional.
Juvenal apareceu com a bandeja: manjuba dourada, dois chopes, e o costumeiro palpite atravessado.
— É o tipo de gente que não entende nada, mas tem opinião sobre tudo. Vai na onda. Tá com raiva? Mira e atira. Lula, Congresso, síndico, entregador de app… todo vermelho é comunismo. Menos a Ferrari vermelha do vizinho, claro. Aí é sinal de vitória divina.
— Veja, Doutor — continuei — tem algo no ar. A prosperidade virou uma fixação crescente por objetos que prometem status, poder e virilidade. A pistola dourada. O foguete de Elon Musk. O míssil dos Estados Unidos. O Porsche que atropela. A bandeira amarrada como capa de super-herói decadente. Tudo isso me parece menos opinião e mais sintoma.
O doutor ergueu os olhos por cima dos óculos — o que, no nosso código, significa “siga, você está se entregando bem”.
— É como se a ausência, se a falta de sentido tivesse que ser preenchida por fetiches. A arma, o carro, o bordão agressivo. Tudo vira forma de compensar uma insegurança que ninguém admite. E esses símbolos, sempre fálicos…
Um sorrisinho de canto revelou que o doutor, concordava comigo.
— Mas há um entusiasmo na ostentação. Como se a potência estivesse ali, em quatro rodas cromadas. Veja o Trump: o sujeito é um fetiche ambulante: ou tarifaço ou míssel, ameaça. Sempre tentando parecer viril. Agora quer taxar países que não se ajoelham diante dos EUA. Tipo um miliciano global: “ou entra no clube ou vai apanhar.” Sem ser convidado, ele se mete em reunião do condomínio do prédio vizinho, exigindo a contração das empresas dele.
Juvenal interrompeu, limpando o balcão ao lado:
— E, no fim, é tudo sobre parecer forte. Mas é só aparência. Igual aquele pessoal, como a Carla Zambelli, que posta selfie com legenda bíblica impactante, mas depois foge da Justiça e, ainda diz que só enfrenta o hacker cara a cara se for virtualmente. É uma piada pronta. Só falta o Eduardo Cunha recuperar a reputação lendo o Velho Testamento no rádio: “não roubarás”…
— A política é essa novela escrita em tempo real — suspirei. — Hugo Motta, por exemplo. Levou porrada nas redes porque quis proteger os mais ricos, e agora quer liberar geral pros golpistas. É tipo aquele cara que toma um fora e depois desdenha: “nunca quis mesmo”. A vingança do castrado — ops! — digo, do ressentido.
O doutor terminou o chope com aquele ar de quem absorveu tudo e nada ao mesmo tempo. Por um segundo, achei que viria a frase fatal. Aquelas que ele solta como quem joga uma pedra num lago congelado.
Mas não.
Ele se levantou, pagou a conta, e antes de sair, apenas disse:
— Às vezes, o fetiche é só a forma mais elegante de negar o fracasso.
Juvenal chegou recolhendo os copos.
— Mandou aquela?
— Mandou — respondi, encarando sem ação o fundo do copo vazio.
— Toma mais uma dose, recomendou Juvenal.
