DIVÃ NO BOTECO – XXXV

O cair da tarde no Fale Mais Sobre Isso é um espetáculo que deixaria qualquer influencer sem filtro. O sol, exibido, se derrama sobre o deck como quem quer biscoito, enquanto o chope gelado espuma feito promessa de feriado prolongado. Estou aqui, no meu divã, com um olho na tulipa e outro na cena surreal que se forma.

Juvenal, o garçom com um talento de detetive e coração de freira franciscana, já farejou encrenca: numa mesa, uma criança de uns cinco anos brinca com um guardanapo como se fosse origami de última hora. Ao lado, uma bolsa de grife que brilha mais que dente de cantor sertanejo. Daquelas que custam mais que três aluguéis e um fígado no mercado negro.

Quem deixa uma criança e uma bolsa de 14 mil reais largadas num boteco? Meus neurônios pulam igual milho em panela quente.

Juvenal, diplomata nato, recolhe a bolsa com a mesma delicadeza de quem segura um vaso chinês e a guarda atrás do balcão. Em seguida, recruta um moleque da rua com um convite irrecusável: sorvete de casquinha em troca de babá freestyle. O menino aceita, e logo estão os dois jogando pedrinha dentro de um copo como se aquilo fosse a final da Copa do Mundo Sub-6.

Eu assisto, dividido entre o encantamento e a indignação. Que tipo de gente deixa o filho sozinho e faz da bolsa seu totem sagrado? Aqui, onde a única ostentação permitida é de histórias boas, piadas ruins e cicatrizes de boleto vencido?

O Doutor chega, como sempre: paletó impecável, barba bem feita e o ar de quem sabe mais do que diz — e cobra por isso. Tira o bloquinho do bolso e me lança um olhar com a sutileza de um raio-X. Juvenal passa, bandeja de manjubinhas  em mãos, e solta, como quem já viu tudo:
— Quem são os pais que largam uma criança sozinha e somem?

O Doutor rabisca com um sorrisinho que traduz: fale mais sobre isso. E eu falo.

— Olha, Doutor… talvez a mãe tenha ido fumar, ou fazer selfie no banheiro. Mas essa bolsa… essa bolsa é um soco na cara com dedo em riste. Aqui, a gente se iguala pelo papo, pela espuma do chope, não pela fatura do cartão.

O Doutor anota. Eu engato.

— Sabe o que é isso? É a tal da “distinção” que o Bourdieu falava. A bolsa não é bolsa. É grito. Grito de quem quer dizer “sou mais que vocês”. Mas no Fale Mais Sobre Isso, o que vale é ser. Ter é só detalhe.

— Freud explicaria como ego tentando tapar o buraco do id com um zíper Louis Vuitton — ou qualquer outro nome que a elite pronuncie errado pra parecer cosmopolita.

Mais rabiscos do Doutor. A plateia ao redor segue alheia. Entregador de app, professor, artista, advogado: todo mundo na mesma mesa, dividindo a calabresa e a revolta. E aí surge a bolsa de 14 mil como se fosse o dólar ameaçado pelo Brics: símbolo de poder numa economia falida de afetos.

Aliás, Doutor, tem gente que idolatra tanto o dólar que já vejo Trump como aquele garoto mimado da escola que diz:
— “Se não usar meu brinquedo, toma imposto!”
Ele vai acabar criando sobretaxa pra quem ousar amar o Real. E ainda vai dizer que o dólar é rei, vestido de cetim, distribuindo autógrafos na Disneylândia.

De repente, a paz do boteco é estilhaçada. Entra uma mulher com cara de LinkedIn Premium e salto que anuncia presença.
Cadê minha bolsa?, berra, como se fosse vítima de sequestro diplomático.

O bar paralisa. Juvenal, sereno como sempre, entrega o objeto perdido com um sorriso de monge zen. Ela agarra o couro de luxo como se fosse o filho. Que, aliás, só depois ela percebe a ausência dele.

Maurício?!, ela grita, correndo até o canto onde o menino ri com os moleques da rua. E aí começa a tragédia: não comoveu-se com a solidariedade improvisada, nem agradeceu. Só viu o “risco” de mistura social.

— “Você não pode brincar com qualquer um!”, ela solta, e o bar estremece.
Vaias leves surgem, como ondas discretas. Um apupo. Uma colher batendo no copo. Até Juvenal, senhor do decoro, perde a compostura:
Quer mais alguma coisa, dona?

Ela não responde. Apenas joga uma nota de 200 — aquela mesma que a gente só vê em reportagem de propina — e sai, puxando o menino pelo braço. O garoto chora. O bar aplaude a saída da dona, de pé.

O Doutor continua me encarando. Eu desabo na cadeira como quem acabou de testemunhar o espírito do tempo escorregando na própria arrogância.

— Sabe, Doutor… a vergonha não é vilã. É farol. É sinal de que ainda somos humanos tentando caber no mundo. Mas aquela mulher… ela não sentiu vergonha. Sentiu medo. Raiva. Talvez a bolsa seja o escudo dela. A prova de que “venceu”. Venceu o quê, exatamente? O menino tava lá, sozinho, invisível. E ela achando que pertencia a outro planeta, onde as crianças nascem sabendo etiqueta e o Uber espera na porta do colégio.

O Doutor fecha o bloquinho com estalo. Me olha firme.

A vergonha é o rubor da alma diante do espelho social.

Silêncio.

O bar volta a respirar. Copos tilintam. A fritura canta. O mundo gira. E eu fico ali, segurando o copo, tentando entender se aquela bolsa era mesmo de 14 mil… ou só o preço da solidão mal disfarçada.


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