DIVÃ NO BOTECO – XXXVI

Cheguei ao Fale Mais Sobre Isso com aquele nó na garganta de quem acha que carrega o peso do mundo nas costas. Mas, como sempre, o boteco era meu santuário pagão contra o caos: um território neutro onde a guerra do mundo se dissolvia sob o tilintar de copos e o cheiro abençoado de fritura. Minha única meta? Ocupação imediata do meu trono — uma cadeira de plástico com encosto alto, deformada pelas minhas crises existenciais e dores lombares. Só que não. Lá estava Juvenal, o garçom-filósofo, despejando confissões ao Doutor com a seriedade de quem entrega provas secretas para o Tribunal de Haia.

Sem lugar pra sentar, fui buscar outra cadeira, arrastando-a pelo chão pegajoso como quem rasga um contrato com a quinta dimensão. E, de canto de ouvido, captava o drama: Juvenal, com a eloquência etílica de quem já despejou mais chope do que Lionel Messi distribuiu assistências, gesticulava como se estivesse conduzindo um debate no Parlamento.
O Doutor, impassível, reagia com um aceno aqui, um “hummm” ali, e seu bloquinho — aquele Oráculo de Delfos versão papel reciclado — capturava silenciosamente as entranhas da alma humana.

— Doutor — dizia Juvenal, entre um suspiro e outro de indignação —, o senhor não vai acreditar no que o Vizinho Laranja aprontou. Esse CAC dos infernos, com aquele cabelo que parece uma antena 5G em curto-circuito, só sabe pedir one beer, please ou the check, como se o boteco fosse um pub em Londres. Outro dia pediu um “feedback” sobre a caipirinha e reclamou do “low standard” da manjubinha!

Eu, já me equilibrando na cadeira nova com a elegância de um bêbado disfarçando a curiosidade, me meti:

— Juvenal, que raio esse gringo genérico aprontou agora? Só de ver aquele topete fluorescente, me dá vontade de acionar o Ibama. Aquilo ali é claramente uma espécie invasora.

Juvenal soltou um riso breve, mas o tom voltou a pesar:

— O problema, meu camarada, não é só o Laranja. É o cachorro dele. O Mito. Um troço que parece mistura de lobo, rottweiler e trauma de infância. Late pra sombra, pro vento, e já mandou mais motoboy pro pronto-socorro do que motorista ao celular na Marginal Tietê.

Assenti em silêncio. Os cartazes de “Cuidado com o Mito” nos postes já eram parte da paisagem. Um cachorro que fazia até o carteiro pensar em mudar de profissão e virar escritor de crônicas.

— Pois bem — prosseguiu Juvenal —, a Justiça atendeu ao pedido do condomínio e mandou o Mito pro canil municipal. Por tempo indeterminado. Consideraram ele “inelegível à convivência urbana”. Um risco à ordem, à paz e ao espetinho de carne da Dona Cida. Mas o Vizinho Laranja ficou pistola. Anda rondando o boteco, ameaçando tarifaço na porção de manjubinha e no meu sanduíche de pernil se não soltarem o cachorro. Disse que vai explodir o gabinete do prefeito se não anularem o processo. E ainda posta selfie com os fuzis de CAC na rede social, com legenda em inglês: I’ll make the bairro great again!

— Isso é terrorismo gastronômico, Juvenal! — soltei, ofendido. — Extorsão botecal! Um miliciano gourmet tentando controlar o fluxo de petiscos de boteco! Isso aí é Trump com menos QI — se é que isso é possível.

Juvenal concordou, com olhos de quem tá a um passo de lançar um manifesto.

— Ele acha que manda no bairro porque tem um topete que brilha no escuro e um cachorro que late como estampido de metralhadora. O bairro está em pé de guerra! E ele ainda se faz de perseguido. Mas o Mito não é mártir, é caso de zoonose!

Um silêncio cheio de opinião pairou sobre o boteco. Até o Doutor, que raramente se afeta, parou de rabiscar e encarou o copo de cerveja como se ali estivesse o mistério da psique humana. Esperei um insight profundo, algo sobre narcisismo maligno ou delírios messiânicos. Mas o Doutor apenas ergueu os olhos, ajeitou os óculos e, com a voz de quem resume a civilização num tweet, disse:

— Às vezes, as pessoas são só más mesmo.

Silêncio. Bateu como tapa de mãe que educa com amor e chinelo.

Foi quando o clima esquentou: o Vizinho Laranja apareceu, topete aceso, sorriso de vilão da Disney e pose de quem espera reverência. Mas o Fale Mais Sobre Isso não era cenário de rendição. Os frequentadores se levantaram como se ensaiassem uma ópera revolucionária. Seu Zé, o padeiro, tomou a dianteira:

— Cai fora, Laranja! Aqui não é Trump Tower, é bar com telha de amianto e honra de sobra! O Mito fica no canil e você, longe do nosso balcão!

Dona Cida já brandia uma vassoura como se fosse lança medieval:

— Vamos marchar até a prefeitura! Pelo direito de beber em paz sem ameaça de tarifa alfandegária no torresmo!

Juvenal, tomado pela revolta ética dos que ainda acreditam na utopia botecal, ergueu um copo do cremoso:

— Chope e manjubinha por conta da casa pra quem ajudar a expulsar esse laranjão do nosso templo! Viva o Fale Mais Sobre Isso!

Aplausos. Um clima de final de Copa. Faltou só o Galvão narrar.

Olhei pro Doutor. Ele, agora sorrindo torto, parecia estar à beira de um brinde. Meu nó na garganta? Evaporou. Meus boletos? Temporariamente cancelados. Meu chefe insuportável? Um detalhe frente ao topete ameaçador.

— E eu que achei que tinha crise pra contar… — soltei, com orgulho meio bobo. — Comparado a isso aqui, meu maior complexo é a dose de açúcar na caipirinha.


3 respostas para “Tarifa, Mito e a Revolta no Fale Mais Sobre Isso”.

  1. Avatar de Tarifa, Mito e a Revolta no Fale Mais Sobre Isso – Meedito

    […] Tarifa, Mito e a Revolta no Fale Mais Sobre Isso […]

    Curtir

  2. Avatar de Tarifa, Mito e a Revolta no Fale Mais Sobre Isso – Divã no Boteco

    […] Tarifa, Mito e a Revolta no Fale Mais Sobre Isso […]

    Curtido por 1 pessoa

  3. Avatar de Ivan
    Ivan

    Muito mané esse vizinho laranja … Acho que ele não vai ver o Papai Noel …

    Curtido por 1 pessoa

Deixe um comentário