DIVÃ NO BOTECO – XL

Cheguei ao Fale Mais Sobre Isso arrastando a alma como quem perdeu o último ônibus da dignidade. Pedi logo um chope, uma porção de manjubinha e, antes que o doutor pudesse esconder o bloquinho no bolso, disparei:  

— Doutor, seja sincero: eu sou narcisista?  

Ele levantou a sobrancelha esquerda. A esquerda, doutor? Já começou me julgando.  

— Mas veja bem — insisti, enquanto Juvenal largava a manjubinha com a delicadeza de quem despeja prova no colo de réu —, não tô falando de vaidade básica de espelho no elevador. Tô perguntando de zero a dez. Sendo dez o Transtorno de Personalidade Narcisista como o de Trump ou Bolsonaro e zero o daquele sujeito que vende o voto nas eleições e passa pano até pra escândalo de vacina vencida. Onde eu tô nesse espelho trincado?  

O doutor fez aquela expressão que mistura pena e sarcasmo passivo-agressivo. A mesma que ele usa quando o bar tá passando CPI na TV e o freguês pergunta se dá pra trocar pro jogo de vôlei entre Osasco e Clube Pinheiros.  

— Porque, doutor, eu vejo esses caras e penso: será que amar demais a própria imagem também não é uma forma de se odiar? Veja o Trump: o homem transformou a Casa Branca num camarim e a economia global num stand-up onde só ele ri. Impôs tarifa de 50% pro Brasil e ainda disse que era em defesa da liberdade — dele, claro. Liberdade de quê, de ser um bufão planetário com cabelo de algodão-doce radioativo?  

O doutor mordeu o lábio e anotou algo como “delírio de espelho com fundo patriótico”. Ou “paciente flerta com a lucidez”. Difícil saber.  

— E o Bolsonaro, então? Chamou o Brasil de pátria amada e quer entregar a nação de bandeja aos americanos que tiram férias no resort Mar-a-Lago, na Flórida, sem nem exigir um tapinha nas costas. A lealdade do Mito é igual discurso de coach: promete transformação, mas te deixa deitado no sofá da ilusão.  

Na mesa ao lado, um coach de verdade gritava “Acredite no seu potencial!” enquanto perdia no truco. O bar é democrático: cabe o fracasso e o aplauso — às vezes ao mesmo tempo.  

— E veja, doutor, pra mim o narcisismo do Trump é igual ao do imperador romano Cômodo! Aquele que mandou erguer uma estátua com corpo de Hércules e a cara dele — um crime contra o mármore e o bom senso. E, não satisfeito, se declarou deus vivo e rebatizou Roma como “Colônia de Cômodo”. O império caindo aos pedaços, e ele brincando de semideus com delírios de urbanista megalomaníaco.  

O doutor franziu a testa, como quem suspeita que o paciente está se tornando mais perigoso que o próprio diagnóstico.  

— E não me venha dizer que sou eu que tô projetando. Quem tá projetando é o Milei, que chamou a vice de traidora só porque ela ajudou gente com deficiência. O homem que se diz libertário quer impedir que pobre respire. O novo normal é esse: gritar liberdade enquanto prende adversário e enforca o país nas próprias neuras.  

Juvenal passou com a bandeja e murmurou “os libertários tão tudo pedindo arrego pro Xandão”. Anotei mentalmente. Juvenal é o verdadeiro ministro da verdade deste bar.  

— E agora essa história da Francesca Albanese! Perseguida pelos EUA porque disse que direitos humanos servem pra todo mundo, inclusive pros palestinos. Os trumpistas a chamaram de antissemita porque ela ousou usar a palavra “vida” fora do protocolo da OTAN. O regime virou um karaokê onde só entra quem canta a música dos coveiros da própria democracia.  

O doutor cruzou os braços, me olhou por cima dos óculos como quem pergunta “vai parar ou já tá no clímax?”. Eu segui.  

— Eis a questão, doutor: se o espelho tá rachado, o reflexo ainda vale? Porque hoje todo mundo é vítima, todo mundo é herói, todo mundo é deus no Instagram. Menos o povo, que continua pagando imposto pra bancar a tragédia.  

Juvenal limpou a mesa com uma toalha que já serviu mais causas do que muita toga no STF. Passou olhando o doutor, como quem pede um veredicto — ou só quer saber se a conta já vai ser dividida.  

— E aí eu volto à pergunta inicial, doutor: de zero a dez, onde eu tô? Porque se amar demais é virar um Trump e não se amar é permitir ser governado por ele, onde fica o ponto de equilíbrio?  

O doutor fechou o bloquinho, deu um último gole, olhou bem dentro dos meus olhos e, com a solenidade de quem está prestes a soltar a única frase da noite, disse:  

— Depende em quem você se espelha.  

E saiu. Me largando ali, entre uma manjubinha e uma dúvida existencial, cercado de gente que cantava — Ai, ai, ai, ai, tá chegando a hora, tornozeleira instalada na perna do Bozo, tá na hora de ir em cana.  

Pedi mais uma rodada. Narcisista ou não, ao menos eu ainda sei a diferença entre amor-próprio e culto à personalidade.  E me juntei ao coro: — Ai, ai, ai, ai, tá chegando a hora, tornozeleira instalada na perna do Bozo, tá na hora de ir em cana.  


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