DIVÃ NO BOTECO – XLI
Entro no Fale Mais Sobre Isso carregando o Brasil nas costas — ou, mais precisamente, um tarifaço gringo, ameaça de golpe e o eterno peso de fingir que a insanidade é só um problema dos outros.
O boteco, claro, continua nosso oásis democrático. Mesas dentro, mesas fora, uma fauna que vai de poetas sem Pix a engravatados em burnout precoce. Todos fingem que estamos na Suíça: território neutro onde ninguém esfaqueia ninguém por política — ainda.
Mas a tensão paira. Flutua no ar como o cheiro de manjubinha frita que Juvenal, o garçom-diplomata, equilibra com a classe de um maître da ONU.
Lá está o Doutor — meu psicanalista informal, guru do inconsciente de botequim — concentrado em seu bloquinho. Só ele e um chope gelado ocupam a mesa. Não ouso interromper. Vai que ele está decifrando o ego coletivo do Brasil enquanto belisca insights junguianos.
Dou uma olhada ao redor e vejo o caos: Juvenal preso na mesa do Brasil Paralelo — aquele cantinho onde a realidade sai pra fumar. É um grupo peculiar: profissionais liberais sonhando com o primeiro bilhão, uns com herança, outros ralando 12h por dia. O Otávio, por exemplo: cabeleireiro carismático, cobra 60% dos colegas de salão com um sorriso que faz até auditor da Receita baixar a guarda.
Ali também está o Jair, o Xará, com jaqueta de bandeira dos EUA e cérebro em rede fechada. Está dizendo que a Globo é comunista e só não faliu porque o Lula banca os Marinhos. E, claro, tem o Laranja — versão pocket e surtada do Trump. Berra que a pandemia foi farsa da mídia e da Pfizer pra manter o povo trancado e o “sistema corrupto” em pé. Curiosamente, é sócio de uma empresa que vende vacina. Contradição? Não. É só o Trickster em ação: arquétipo clássico junguiano, malandro, caos com gravata, disfarçado de libertador.
Juvenal tenta explicar ao grupo de alucinados: a cachaça do boteco vem de alambique mineiro, não de canavial vermelho. Não é do MST! Mas o Xará e o Laranja começam a fazer bullying etílico: “Cadê a vodca de Putin? O rum de Cuba? Essa cachaça é comunista!”
Juvenal, mais rápido que um algoritmo de fake news, tira um vidro sem rótulo e anuncia:
— “Rodada do Spirit de New Orleans!”
A mesa aplaude. Bebem como se tivessem derrotado o Foro de São Paulo. Eu observo de canto. O Doutor ergue uma sobrancelha — seu jeito sutil de dizer: “Anotei.”
Quando finalmente escapa, Juvenal traz meu chope e as manjubinhas do costume. Provoco:
— “Desde quando você importa spirit jazzista?”
Ele pisca, sarcástico:
— “Importo nada, chefe. É a mesma cachaça de Coronel Xavier. Mas eles só acreditam no que querem. Vacina mata, o Brasil é ditadura por causa do Mito preso no canil… então dei um rótulo que eles engolem.”
O Doutor, sem dizer uma palavra, escreve no bloquinho: “Trickster.”
Entendi tudo. Não era só o Trump, nem o Laranja. O Trickster estava ali, de avental, servindo verdades enfeitadas pra quem só bebe mentira com gelo.
Mas meu inconsciente militante se solta:
— “Sabe, Doutor, o Trump é o maior Trickster da modernidade. Tarifa o Brasil, abriga traidor, manipula ressentido — e o povo aplaude. Igualzinho ao Laranja aqui, que acha que a Globo é do PT e que o cachorro dele, o Mito, tá preso no canil por crime de opinião.”
O Doutor pisca os dois olhos. Tradução: “Continue.”
— “Como alguém, com geladeira cheia e quatro refeições por dia, acredita que a Terra é plana, a Globo é comunista e vacina tem chip? É guerra simbólica, Doutor. Só que os símbolos estão mofados. A Globo é do poder, sim — do dinheiro. E agora tem parlamentar defendendo gringo contra o próprio país!”
O boteco silencia. Até a mesa do Brasil Paralelo congela por dois segundos. O Doutor toma um gole, vira a página do bloquinho, e solta, como se fosse o Oráculo de Delphos num bar em Madureira:
— “Os vulneráveis ao Trickster são os que têm medo do vazio da própria dúvida.”
Pá. Silêncio. Juvenal ouve do balcão e grita:
— “Rodada de Spirit de New Orleans, uai?”
Respondo:
— “Serve o trem, Juvenal!”
E enquanto ele traz a cachaça com nome de jazz, penso: o Trickster não engana só os outros — ele oferece pertencimento. E muita gente prefere uma mentira bem embalada a uma verdade dura e sem glamour. Talvez o Fale Mais Sobre Isso seja mesmo a Suíça. Ou talvez seja só o espelho cômico da nossa loucura coletiva — com manjubinha.
