DIVÃ NO BOTECO – XLIII

Cheguei ao Fale Mais Sobre Isso com a alma em frangalhos, como quem atravessou um campo minado sem mapa. O país tá de cabeça pra baixo, mas a vizinhança só quer saber do preço do vinho argentino depois do Milei. Aqui, pelo menos, dá pra sentar, pedir um chope e criar a própria ilusão que o mundo é só a calçada, a mesa e a porção de manjubinha que Juvenal entrega como se fosse a cura pra tudo.

— Boa tarde, Juvenal — digo, desabando na cadeira. — Hoje é dose dupla de chope. Se sobrar dignidade, uma terceira.

 — Afogando mágoa ou regando indignação? — pergunta ele, enchendo o copo com aquele líquido dourado que promete alívio. 

— Guerra psicológica, Juvenal. Tô na trincheira.

O Doutor já está na mesa, claro. Postura de estátua, sobrancelha arqueada, bloquinho escondido no paletó como uma arma secreta. Ele me cumprimenta com um aceno de cabeça, que no idioma dele é um “despeje sua neurose”. Um leve tamborilar dos dedos na mesa já me deixa inquieto.

— Doutor, me explica: como um vizinho bem alimentado, vestindo roupas de grife e com carro que parece nave espacial, se vira contra o próprio país? Trump enfia sobretaxa, o real desaba, e o cara tá puto com quem? Com o STF! É como levar um tapa do vizinho e socar a própria mãe.

Juvenal larga a bandeja na mesa e entra no papo: 

— Vi na TV hoje. Parlamentares berrando na mesa diretora e ocupando a cadeira da presidência, parecendo criança que perdeu o pirulito. Tudo porque o “Mito” tá em prisão domiciliar. Mas o currículo dele tem mais crime que cartel mexicano… 

— E o filho ainda vai pros EUA fazer chantagem geopolítica — interrompo. 

— “Solta meu pai, senão peço pro Trump ferrar vocês”. Típico menino mimado pedindo pro papai rico resolver. Aí tem um problema com a figura parterna, que só Freud explica.

Juvenal ri, balançando a cabeça.

 — Esse Dudu acha que vai chegar no Texas como herdeiro de império. Bobagem. Rico americano usa, depois joga fora. Lembra do Noriega, no Panamá? Enquanto servia, era “líder legítimo”. Quando não serviu mais, virou bandido internacional.

O Doutor ergue uma sobrancelha, anota algo com um movimento rápido, quase cirúrgico. Eu continuo, agora com o sangue quente: — E o pior, Doutor? Essa gente idolatra seriado americano, música country do Texas, mas se você falar de Ainda Estou Aqui, premiado no Oscar, torcem o nariz. Filme brasileiro é “comunista”. Agora, se a Netflix lança um drama sobre cachorro fuzileiro naval salvando a a bandeira americana, aí é choro e hino dos EUA na playlist.

— É guerra psicológica, meu amigo — diz Juvenal. — Igual na Segunda Guerra, quando jogavam panfletos do céu dizendo pros soldados inimigos que estavam abandonados, sem chance de vencer. Hoje não precisa avião: o WhatsApp faz o serviço.

Eu me lembro de uma cena histórica.
— Doutor, isso me lembra a “Guerra dos Mundos” do Orson Welles, em 1938. A simples transmissão de radio  simulando invasão alienígena deixou muita gente em pânico. Pulavam da janela, fugiam pro mato e estocavam alimento. Era só uma novela, mas quando deram por si, já tinha feito um estrago mental. É isso que tá acontecendo agora: plantam a paranoia e o resto a gente faz sozinho.

O Doutor ajeita os óculos, me encara com aquele silêncio clínico que significa “você está chegando no ponto”. Eu ergo o copo e despejo:
— É isso! O brasileiro virou sapo no fundo do poço, olhando o céu e tentando prever o tempo. Zumbi de WhatsApp, à mercê de miliciano carioca que fugiu do Rio mas continua mandando bala digital. E o pior: tem orgulho disso.

Juvenal limpa as mãos no avental e arremata:
— O bolso já tomaram faz tempo. Agora a guerra é pela sua cabeça.

O Doutor finalmente tira o bloquinho do bolso, escreve e empurra o papel pra mim. Está lá, com sua caligrafia minúscula. Então, ele lê em voz alta o que escreveu:

 —  “Você não precisa dançar com o caos — só entender por que ele te convida”.

Nesse exato momento, um carro de som passa na rua tocando hino nacional brasileiro remixado com batida de funk alusiva ao hino americano e voz metálica anunciando “atenção patriotas!”. Metade do boteco olha pra fora. Juvenal revira os olhos e pega a bandeja como se fosse um escudo.
— Tá vendo? — ele diz. — Isso aí é panfleto aéreo versão século XXI: entra pelo ouvido, finca no cérebro e você nem percebe.

O Doutor dá um gole no chope, olha pra mim e sussurra:
— A guerra psicológica já chegou aqui dentro. A diferença é que aqui… a gente tem a munição certa.

Ele ergue o copo. Brindamos.

Lá fora, o som do carro de som se perde na esquina.


Uma resposta para “Guerra Psicológica no Boteco: Chope, STF e a Sedução do Caos”.

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