Eu já estava sentado na mesa preferida do Doutor havia horas quando o vi entrar. Tentei me levantar, mas meus joelhos tinham feito um pacto secreto com as duas caipirinhas que já havia tomado. Preferi me poupar do papel de bobo da corte: continuei grudado na cadeira como se fosse parte do estofado. Ele, com a educação cirúrgica de sempre, fez um gesto para que eu ficasse onde estava. Imagino que ele também quis me poupar da cena patética de um paciente bêbado tentando provar que está sóbrio, tropeçando no próprio ego.
O Doutor, implacável no seu ritual, sinalizou para o Juvenal, que já vinha marchando em nossa direção com o chope cremoso e a sagrada porção de manjubinha crocante. Pela sobrancelha arqueada, percebi que ele já tinha sido informado da minha terceira rodada. Juvenal, maldoso como só garçons íntimos sabem ser, sussurrou:
— O homem tá aqui desde cedo, Doutor. Se autossabotagem pagasse imposto, ele já estaria na lista da Receita Federal.
Fingi que não ouvi. A verdade é que eu estava anestesiando a consciência. Terapia líquida, não psicanálise. Derrubei a máscara de sobriedade e comecei a tagarelar:
— Sabe, Doutor, eu não sei se bebo pra comemorar o julgamento do século ou pra afogar a frustração de ver que a condenação de Bolsonaro, Braga Netto, Heleno e companhia limitada não é unanimidade. Tem gente que só fala “top” e “show de bola” insistindo em pedir anistia pros traidores. Eu não quero esquecer, Doutor. Não quero Freud nem Lacan me convencendo que é coisa da minha cabeça. Eu quero é que a justiça seja feita — e, de preferência, com cadeia no final.
O Doutor apenas inclinou a cabeça, anotando no bloquinho como quem escreve o roteiro de uma tragédia grega encenada num boteco de esquina.
— E antes que diga, eu não estou me autossabotando, não. Isso é raiva. Autossabotagem é o que fez Bolsonaro: um Hamlet da extrema-direita, tragado pela própria narrativa. Ficou repetindo que a eleição foi roubada como se fosse mantra de coach de Telegram, e agora saboreia o prato frio da culpa inconsciente. Se autossabotagem fosse epidemia, esse julgamento tava mais lotado que pronto-socorro durante a covid.
Juvenal interrompeu, servindo mais chope:
— Doutor, se autossabotagem fosse multa, esse boteco já tinha mais fila que o Poupatempo.
Ri, mas foi aquela risada amarga de quem já parcelou terapia no cartão.
— Olha o Mauro Cid, por exemplo. Um Raskólnikov fardado. Acha que tá obedecendo a um propósito maior, mas no fundo só comete crime atrás de crime e depois é engolido pela própria consciência. É o protagonista de Crime e Castigo, Doutor: um sujeito que mata achando que é Napoleão e termina confessando porque não aguenta o peso do próprio cérebro. O nosso ajudante de ordens seguiu a cartilha: achou que era herói da pátria, mas terminou delatando como quem procura absolvição numa novena. Sua delação virou carta de suicídio emocional.
E os generais? Ah, os generais… Orgulho de Napoleão em 1812, acreditando que a neve de Moscou não congela farda. Marcharam para o golpe como se estivessem invadindo a Rússia de charrete, confiantes de que a História iria bater continência. O advogado de Braga Netto até se esforçou, mas nada inocenta o cliente do ridículo de conspirar com minutas de golpe — e os keds pretos com seus alvos de morte.
A cada comparação, o Doutor só mexia a barba aparada e rabiscava no bloquinho. Juvenal, sarcástico, passou de novo:
— Nunca vi advogado tão especialista em autodestruição.
— Exato, Juvenal! — bati na mesa. — Demóstenes Torres é a prova viva. O sujeito foi relator da Lei da Ficha Limpa e terminou cassado. Agora ressurge falando da vida pessoal durante a defesa do cliente, defendendo réu golpista, citando cigarro para Bolsonaro e distribuindo elogios a Alexandre de Moraes. É o arquétipo clássico do homem que tenta se redimir e repete o mesmo erro. Um Dom Corleone do cerrado, só que sem a elegância siciliana.
O Doutor pigarreou, fechou o bloquinho e, no auge da sessão etílica, soltou sua única frase da noite:
— A maior autossabotagem é a do país que absolve seus sabotadores.
Silêncio. Até Juvenal parou de mastigar uma manjubinha roubada da travessa.
Foi quando entrou um grupo de estudantes, animados, celebrando a condenação histórica: o Brasil, pela primeira vez, punindo generais e ex-presidente por tentativa de golpe. O boteco virou uma micareta constitucional.
Empolgado, pedi uma água tônica com limão e um café, tentando ressuscitar minha sobriedade. Pela primeira vez na noite, senti que a embriaguez não era derrota, mas apenas o prelúdio de uma catarse coletiva.
— Tá vendo, Doutor? — falei com um sorriso de orelha a orelha. — Freud chamaria de compulsão à repetição, mas eu chamo de Brasil. Só que, dessa vez, com final diferente.
O Doutor não respondeu. Mas Juvenal piscou, como quem diz:
— Até que enfim esse paciente deixou de se sabotar.
