Divã no Boteco – XLIX
Cheguei ao boteco Fale Mais Sobre Isso mudo, como se tivesse engolido o próprio verbo. Pedi o chope, ajeitei a cadeira da mesa de sempre e fiquei encarando o nada — que, convenhamos, anda menos frustrante que o noticiário. O doutor apareceu vinte minutos depois, acenou, mas juro que não sei se foi boa tarde ou boa noite. Juvenal veio com a rodada, me cutucou e já entregou a fofoca:
— Doutor, esse aí não abriu a boca desde que sentou.
O psicanalista só levantou a sobrancelha esquerda. No código secreto dele, tenho certeza que significava: “Ou fala agora ou fuja como um rato”.
Respirei fundo, molhei os lábios no chope e soltei:
— Doutor, tive um sonho perturbador… sonhei com ratos. Não os de Esopo, que queriam se proteger colocando um sino no pescoço do gato, mas meus delírios trouxeram uma versão mais tenebrosa. Os meus ratos estavam aprendendo a ficar invisíveis.
— Esopo? — perguntou Juvenal.
— Sim, Juvenal. Muito antes de Paulo Coelho, Esopo, que foi escravo grego, inventava fábulas que traziam sempre a moral da história — expliquei.
— Só que na minha versão — disse, me dirigindo ao doutor —, os ratos não temiam mais o gato. Nem vergonha tinham. Estavam ocupados em blindar seus próprios delitos. Criaram túneis, roubaram queijos e, quando flagrados, decretaram: “Pronto. Agora somos invisíveis”. Invisíveis e impunes.
Juvenal, mais rápido que político correndo para CPI com habeas corpus no bolso, aumentou o volume da televisão:
— Olha aí, freguês. PEC da Blindagem! O deputado ladrão agora ganha capa de invisibilidade igual do Harry Potter. Some rachadinha, some emenda Pix, some golpe de Estado. Some tudo, menos a cara de pau.
Olhei para o doutor e segui descrevendo meu pesadelo:
— No meu sonho, os ratos se reuniam em assembleia e decidiram que só seriam ladrões se a própria Irmandade do Queijo dissesse, em votação secreta: “Sim, temos um rato criminoso”. Até lá, todos limpinhos — mesmo com queijo entalado no bigode.
O doutor, calado, rabiscava como quem escrevia bula de antidepressivo coletivo.
No meu sonho, a consciência da rataria — o superego — tinha pedido exoneração. Largou as chaves e foi se encher de queijo suíço. Sem vigia, a consciência virou bueiro. E quando a consciência é despejada, doutor, sobra o quê? Ratos invisíveis, brindando no Congresso que nunca erraram, enquanto a casa fede.
Bebi outro gole, tentando não rir da tragédia. Porque, no fundo, não era invisibilidade mágica. Para mim, era o recalque dos erros alheios, projetado nos meus sonhos. Na realidade, era patente que o covil não se importa com honestidade. E se desculpava com a mais pura denegação lacaniana: “não é tão grave assim”. O que não entendi, doutor, é por que esse sonho nasceu em mim.
O silêncio do doutor pesou. Até que ele fechou o bloquinho, tomou um gole de chope e largou a sentença:
— Quando a política vira ratoeira, até o queijo da democracia apodrece invisível.
Juvenal piscou, recolheu os copos e trouxe mais uma rodada. Murmurou, como quem entrega a moral da fábula:
— Pois é, freguês. O problema nem é que os ratos perderam o medo do gato. O problema é os ratos tomarem a chave da despensa e ainda cobrarem ingresso pra festa com o queijo dos outros.
