Divã no Boteco – L

O sol se punha com um brilho laranja, como se a primavera tivesse contratado o diretor de fotografia da Anitta filmando clipe no deserto. O deck do Fale Mais Sobre Isso estava lotado. Mesas dentro, mesas fora, jovens, velhos, hipsters, engravatados — parecia até que o Brasil tinha inventado o open bar da democracia. Riam alto, brindavam com chope espumante e devoravam manjubinha como se fosse petisco oficial da cidadania. O ar era de alívio coletivo, como se o povo tivesse tirado a tornozeleira eletrônica das costas.

Eu, claro, estava na minha mesa cativa, com o Doutor, meu psicanalista de boteco, que mais uma vez fingia me ouvir enquanto rabiscava sabe-se lá o quê naquele bloquinho surrado que ele tira do bolso como se fosse a Constituição.

— Juvenal, mais uma rodada! — gritei, enquanto o Doutor erguia a sobrancelha, seu jeito de dizer “fale mais sobre isso” sem gastar saliva. Juvenal, coração-de-mãe em forma de garçom, veio trazendo chope gelado e uma travessa de manjubinha crocante, que ele jura ser mais eficiente que Rivotril.

— Ó, meu amigo — ele disse, apontando pra TV no canto do bar. — Mesmo depois de enterrar a PEC da Impunidade, já tão empurrando a PEC da Anistia. Eles não se cansam de passar vergonha no débito e no crédito. 

Eu ri. Juvenal é desses que, se fosse deputado, derrubava projeto de lei só com sarcasmo.

— É, Juvenal… isso é o que Lacan chamaria de gozo do Outro. Eles querem nos fazer de palhaços, mas a gente tá aqui, comendo manjubinha e pagando terapia por quilo.

O Doutor sorriu de canto. Provavelmente anotou no bloquinho: “Paciente usa piada como defesa contra castração simbólica.” Ou só a lista de compras, vai saber.

O Fale Mais Sobre Isso vibrava diferente naquela noite. O povo recontava, entre goles e gargalhadas, onde estava durante as manifestações contra a tal PEC da Bandidagem. O Brasil inteiro nas ruas, cantando e gritando, com cartazes que pareciam delírio coletivo de psicanalista.

— Caetano, Gil e Chico, Doutor — falei, batendo no peito. — Eles são o superego nacional. A playlist oficial do trio da democracia. Quando o povo canta “Apesar de você”, a indignação vira poesia.

O Doutor coçou o queixo como quem decide entre Freud ou sobremesa. Juvenal, sempre pronto, voltou com mais manjubinha e ligou o som da TV.

— Olha aí, agora tão vendendo a PEC da Anistia em dose de Frankenstein. O que poderia sair do encontro entre o trio velhaco da República, além das aspirações do Aécio, da rouquidão vampiresca do Temer e dos desejos desviados do Paulinho da Força?  Mas aqui é sem anistia! — disse, imitando Caetano com mais convicção que cover de karaokê.

A gargalhada foi geral, mas por dentro senti aquele aperto. O tipo de castração simbólica que Freud chamaria de “facada no ego” e eu chamaria de “segunda-feira”.

Mas o clima era de vitória. A indignação, essa emoção moral que empurra gente pra rua, tinha dado resultado. As ruas cheias, o Congresso acuado, e até Lula na ONU, soltando um discurso que fez o boteco aplaudir de pé, como se fosse final de Copa.

Foi aí que a atmosfera mudou: um vulto laranja se aproximou da mesa. O vizinho. O clone de Trump versão Paraguai. O mesmo que já tentou explodir a prefeitura porque prenderam o cachorro dele que mordeu metade da rua. Ele já tinha sido expulso do Fale Mais Sobre Isso tantas vezes que tinha direito a programa de milhagem, mas Juvenal — sempre confundindo Freud com São Francisco — deu um “green card” pro sujeito, com a condição de não ameaçar ninguém.

— Juvenal, você é o próprio Freud com complexo de salvador — brinquei. O Doutor ergueu a sobrancelha de novo. Provavelmente anotou: “Paciente projeta sarcasmo pra disfarçar inveja do garçom.”

O Laranja, surpreendentemente, estava manso. Pediu uma porção de manjubinha e, num ato falho de manual, deixou escapar:

— Essa PEC da Impunidade era demais até pra mim. Mas a da Anistia? Eu topo, desde que venha com isenção de IR. Quem não gosta de um dinheirinho a mais, né?

O bar inteiro riu da confissão do Laranja. Até o Doutor soltou um meio-riso, o que, pra ele, equivale a fazer um stand-up comedy. Juvenal completou na lata:

— Laranja, você e o Trump abraçando a Estátua da Liberdade… ela ia pedir asilo político em Cuba!

A mesa ao lado gritou:

— Dosimetria de vaidade e narcisismo pro Laranja! 

—  SEM ANISTIA! Repetia o coro coletivo. 

O boteco virou festa. Até o Laranja, que qualquer psiquiatra diagnosticaria com transtorno borderline, ria da própria caricatura.

— Juvenal, meu brother… tô gastando meu dinheiro nessas ‘manjubinha‘, tô sentindo química aqui, hein? — ele disse.

O bar explodiu em gargalhadas. Alguém berrou:

— É a química do Lula com o Trump na ONU! Vinte segundos e você já tá fazendo o L!

Eu olhei pro Doutor. Ele só girou a caneta, aquele gesto de “o inconsciente tá pagando a conta”. E eu me senti bem. A indignação tinha virado algo maior: chope, risada, dignidade servida em porção.

Foi então que o Doutor finalmente falou. Guardou o bloquinho, tomou um gole de chope e, com voz grave de terapeuta em promoção relâmpago, disse:

— A indignação justa é o grito do sujeito contra a indignidade do Outro.

Silêncio. Até o Laranja parou de mastigar. Juvenal aplaudiu. Eu pedi mais uma rodada. Porque, no Fale Mais Sobre Isso, até o superego sabe: análise boa termina com manjubinha extra.


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