Divã no Boteco – LI

O Fale Mais Sobre Isso estava diferente naquela tarde: sem entusiasmo, sem caipirinha e, o mais grave, sem destilado. Juvenal andava tenso — não com a política, mas com a crise das bebidas adulteradas.

— Tomem o chope gelado, doutor. Com esse calor, tá cremoso — disse ele, tentando disfarçar o trauma de não servir um único gole de vodka há dias.

O doutor assentiu com a cabeça, em silêncio. Puxou o bloquinho do bolso e anotou qualquer coisa entre “síndrome de abstinência nacional” e “ato falho coletivo”.

Eu, que filava uma sessão de psicanálise no happy hour do guru do inconsciente, respirei fundo e comecei:

— Doutor, veja o nível da degradação: vinte por cento da bebida vendida no Brasil são falsificadas! Até os paraguaios estão com medo de tomar coisa nossa. A PF encontrou fábrica clandestina em tudo quanto é canto, até em Joinville! Metanol no lugar do álcool. Uma metáfora perfeita do país: a gente bebe ilusão e acorda cego.

O doutor levantou a sobrancelha, gesto que no idioma dele quer dizer “continue”.

— É sério, doutor. O brasileiro não confia nem mais no cachorro engarrafado, no whisky. E sabe-se lá quem adulterou essa porra? O que sabemos é que, quando parece que o clima de ameaça vai embora, com as grandes manifestações de rua, surge esse terror nos balcões dos bares. Um terrorismo etílico — roleta-russa com um copo de gin. A adulteração é antes de mais nada moral. Veja Dudu Bananinha e companhia: o cara é o retrato do metanol moral. Mata o país aos poucos e ainda acha que é exportador de patriotismo.

Juvenal chegou com uma porção de manjubinha, ouvindo de orelhada:

— Esse Dudu é aquele que tá brigado com o pai e o tal do Valdemar, né? — perguntou, ajeitando o prato.

— O próprio — respondi. — Disse que o Valdemar é um canalha, que os votos são do pai, não dele. Veja bem: isso é puro Freud, Juvenal. Complexo de Édipo engarrafado. O sujeito quer ser presidente, mas não suporta a marca do pai no rótulo — quer beber do mesmo trono, mas sem dividir o copo. Rivaliza com o velho e, ao mesmo tempo, jura amor eterno. É a adulteração do caráter em estado líquido.

O doutor fez aquele gesto clássico — tocou o queixo, olhou pro teto e cruzou as pernas. Tradução: “diagnóstico promissor”.

Continuei, animado:

— E o mais cômico é que o Valdemar disse que o Dudu seria capaz de matar o próprio pai pra chegar ao poder. É a tragédia de Édipo reeditada pelo Centrão. Só que, no lugar da Esfinge, temos o PL; no lugar de Tebas, Brasília; e, no lugar da sabedoria… um PowerPoint do Ciro Nogueira explicando ética pública.

Juvenal gargalhou. — Então quer dizer que o menino quer ser rei, mas o trono já tem dono?

— Exato! E o pior é que o velho não abençoa a candidatura. O Dudu tá igual whisky falsificado: procura um partido como garrafa vazia procura rótulo.

Do fundo do bar vinha um coro alegre: a turma ainda celebrava o trio Caetano, Gil e Chico. A música parecia contagiar até o Congresso, onde — por milagre ou vergonha — o Senado havia enterrado a PEC da impunidade que os deputados tentaram empurrar goela abaixo. Depois dos atos públicos, nenhum parlamentar teve coragem de desafiar o povo. Agora, até aprovaram a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até cinco mil e a tributação dos superricos — um gesto quase terapêutico, uma reparação simbólica com gosto de caipiroska bifiltrada, sem trambique, sem adoçante ideológico e com gelo de verdade.

Olhei ao redor. O boteco, esse território suíço da democracia, fervia entre chope e catarse. Todo mundo queria o fim da “lei seca moral” e da “bebida de caráter adulterado” que vinha sendo servida pela família Bolsonaro.

Voltei-me ao doutor:

— Sabe, talvez o país esteja cansado de personalidades falsificadas. Finge-se empatia, lacra-se no X, chora-se no plenário… mas é tudo metanol emocional.

O doutor me observou por longos segundos. Pegou o bloquinho, rabiscou algo e, pela primeira vez naquela sessão líquida, falou:

— Meu caro…no momento, até o superego vem sem selo fiscal — e, pior, ainda dá dor de cabeça.

Juvenal parou com a bandeja no ar, os clientes riram, e eu ergui o copo. No fundo, era isso mesmo: o problema não era o metanol. Era moral.


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