Divã no Boteco – LXIII
O clima estava do jeito que o brasileiro gosta: 38 graus à sombra, um barulho de ensurdecer pensamentos e aquela promessa difusa de que tudo vai melhorar depois da meia-noite — uma mentira que a gente renova anualmente com a mesma convicção de quem jura que vai começar a dieta na segunda-feira. No “Fale Mais Sobre Isso”, a TV de tubo pendurada por um suporte que desafiava as leis da física e do bom senso estava pronta para a contagem regressiva.
Estávamos longe dos palcos oficiais. Nada de Gil distribuindo alegria em Copacabana ou Anitta tentando explicar o Brasil em coreografias de 15 segundos. Ali, o espetáculo era o de chope com colarinho de dois dedos e um país inteiro tentando virar o ano sem virar meme internacional — ou, no mínimo, sem ser preso com passaporte falso.
Eu reinava tranquilo, sentado à mesa com o Doutor, que me encarava com um otimismo clínico: aquele olhar que mistura “que bom” com “vamos ver quanto dura”. Eu estava cheio de esperança. Um ano agourento tinha passado e eu queria renovar a fé. Fazer uma lista de promessas. Dormir melhor. Reclamar menos. Acreditar mais nas pessoas e menos em pastores e messias da pátria.
O Doutor me observava, anotando no bloquinho, já separando o que era euforia do que era tratamento. Esperança, afinal, também é sintoma e … bem dosada, vira remédio.
Juvenal chegou equilibrando dois chopes que prometiam a redenção, mas entregavam apenas uma leve gastrite. Jogou as manjubinhas na mesa e fez o inventário de 2025:
— Golpistas julgados, golpistas presos… Até banqueiro que achava que o Brasil era um tabuleiro de Banco Imobiliário foi parar no CDP de Guarulhos. Quem diria que a justiça, às vezes, resolve sair do modo soneca.
— E o país não quebrou, Juvenal! — bradei, quase derrubando o copo. — O Brasil melhorou. O otimismo cresce em todo lugar, menos naquela bolha de gente que vê o espantalho do comunismo no QR Code do cardápio do bar.
Juvenal limpou a mesa com aquele pano que já viu mais crises que o Banco Central e soltou:
— Eles não são pessimistas por acaso. É vocação. Está no pecado original do grupo. A esperança deles não é pra construir nada. É sempre pra restaurar um passado que nunca existiu.
— Esperança sequestrada dá nisso. A pessoa não espera mais. Ela aguarda ordens — cravei.
Expliquei ao Doutor que entregar a esperança para um pastor é como dar a senha do banco para um príncipe nigeriano que te mandou e-mail: você sabe que é golpe, mas o desejo de ser enganado é maior que o instinto de sobrevivência.
— Eu estou esperançoso para 2026, Doutor — confessei, já na terceira tulipa. — Mas não quero esperança terceirizada. Fé que precisa de intermediário com conta na Suíça ou gabinete paralelo é pirâmide financeira.
Juvenal, nosso assistente em psicanálise, soltou tudo o que sabia sobre esperança:
— Freud diria que é uma ilusão necessária. Jung diria que é a busca por um significado. E, enfim… é parte do inconsciente que nos ajuda a lidar com o vazio e a angústia do desconhecido.
— E se for um sonho coletivo é capaz de mudar a realidade, disse.
Lá fora, uma horda de jovens com roupas brancas (provavelmente compradas na Shein) passava rumo ao show “instagramável” da virada. Todos correndo atrás do ângulo perfeito para esconder o vazio existencial.
— O que será que esse povo quer de verdade, Doutor? — perguntei, num momento de lucidez indesejada.
O Doutor finalmente guardou o bloco. Ajustou os óculos com a precisão de um carrasco gentil e sentenciou:
— Um ano bom, meu caro. E esse é aquele em que o desejo continua sendo seu, a esperança não vira caso psiquiátrico e você para de procurar um messias para pagar os seus boletos.
Silêncio na mesa. Só se ouvia o barulho da gordura fritando. Juvenal recolheu os copos com a autoridade de um sumo sacerdote:
— Mas se o milagre não vier, pelo menos que o CPF continue limpo.
Do lado de fora, os fogos estouraram. Dentro do “Fale Mais Sobre Isso”, brindamos e nos abraçamos desejando um Feliz 2026!
